A estratégia que conseguiu vacinar 94% das meninas de Ruanda contra o HPV
Em visita ao Brasil, o diretor de prevenção e tratamento do câncer desse país africano conta os segredos de um trabalho tão bem-sucedido
E se a gente tivesse uma vacina capaz de prevenir o câncer? Pois ela já existe: os imunizantes que bloqueiam o HPV, por exemplo, são um exemplo claro de como é possível evitar tumores com apenas uma picadinha no braço. Esse vírus, inclusive, é o principal causador dessa doença no colo do útero e em outras regiões do corpo, como vagina, vulva, pênis, ânus, orofaringe e boca.
A vacina está disponível gratuitamente em postos de saúde espalhados pelo Brasil para meninas de 9 a 15 anos e meninos de 11 a 15 anos, além de portadores de HIV de 9 a 26 anos, pessoas que fazem quimioterapia ou radioterapia ou indivíduos que passaram por transplantes de órgão. Mesmo assim, apenas 12,7% dos adolescentes do sexo masculino e 41,8% dos do sexo feminino que integram o público-alvo tomaram suas doses, segundo as estimativas do Ministério da Saúde relativas a 2018.
Como melhorar esses números? Podemos aprender com outros países — e nem precisa citar nações ricas com ótimos índices, como Austrália e Reino Unido. Ruanda, nação localizada no centro da África, alcançou uma invejável taxa de vacinação de 94% das meninas. Como eles conseguiram um resultado tão favorável?
Para saber mais sobre isso, conversamos com o médico François Uwinkindi, diretor da Unidade de Câncer do Centro Biomédico de Ruanda. O órgão é responsável por coordenar todas as campanhas de prevenção, diagnóstico e tratamento de tumores no país. Uwinkindi está no Brasil para participar do Global Forum – Fronteiras da Saúde, evento realizado pelo Instituto Lado a Lado pela Vida, em São Paulo. Confira a entrevista:
SAÚDE: A gente sempre lê e acompanha a realidade do diagnóstico e do tratamento do câncer na Europa e nos Estados Unidos, que são palco dos lançamentos de novos exames e remédios. Mas qual é a realidade do câncer em seu país, Ruanda?
François Uwinkindi: nossa realidade está muito diferente da América ou da Europa, claro. Mas fazemos nosso melhor para conseguir implantar, dentro do possível, o que há de mais moderno e avançado. Em termos de incidência e mortalidade dos diferentes tipos de tumores, o mais prevalente em nosso país é o câncer de colo de útero, seguido pela doença na mama, colorretal, próstata e fígado.
Nosso maior desafio está no diagnóstico precoce. Nossos pacientes chegam até nós muito tarde, quando o quadro já está avançado. Muitos de meus conterrâneos vão primeiro a curandeiros antes de procurar um hospital. E só chegam ao médico quando há pouco a fazer.
Outro ponto importante: nesse cenário de tantos lançamentos de medicamentos, que obviamente não temos a mínima condição de custear, nosso foco está justamente na prevenção e na detecção precoce. Como se sabe, quando a gente detecta um tumor numa fase inicial, o tratamento é muito mais fácil e barato.
Nesse sentido, vocês tem um programa de vacinação contra o HPV que virou exemplo mundo afora. Como ele foi organizado?
O câncer de colo de útero é o mais comum em Ruanda. Trata-se de um tumor altamente prevenível. Apostamos muito na vacinação. Nosso programa começou em 2011 e sempre focou em meninas de 9 a 15 anos. Desde o início, conseguimos ótimos resultados e temos atualmente uma cobertura vacinal de 94%. É um número alto. Trabalhamos agora para expandir o programa com a ajuda de parceiros. Temos muito caminho a percorrer ainda.
E qual o segredo para alcançar uma taxa tão alta?
O primeiro passo foi a vontade política. Tudo começou ali, em 2011. Em Ruanda, quando um assunto recebe atenção de nossos governantes e é aprovado, a coisa anda rápido. A partir disso, apostamos numa colaboração entre muitos setores. A campanha de vacinação contra o HPV não envolveu apenas nosso ministério da saúde, mas teve o trabalho dos ministérios da educação, da promoção da família, entre outros. Foi um trabalho em conjunto.
Até porque os especialistas em saúde podem possuir o conhecimento e a capacidade de administrar a vacina, mas as meninas estão nas escolas. São nesses lugares que elas vão receber a educação para entender a importância daquilo. Precisamos chegar até as pessoas das mais diversas maneiras. Após esses oito anos de trabalho, vamos começar a ver agora a incidência de câncer de colo de útero, entre outros, diminuir em nosso país.
Quando a vacina foi aprovada aqui no Brasil, as campanhas de vacinação foram muito prejudicadas com boatos e notícias falsas. Vocês passaram por uma experiência parecida em Ruanda?
Sim, tivemos uma resistência inicial bem grande. As pessoas começaram a dizer que a vacina era “propaganda de gente branca”, ou espalharam que os imunizantes tornariam nossas adolescentes estéreis. No início, alguns pais chegaram a esconder seus filhos em casa e proibi-los de ir à escola no dia da vacinação. Foram muitas coisas desse tipo.
Para minimizar isso, concentramos nossos esforços na educação. E investimos muito nas autoridades locais. Entramos em contato com as lideranças para que elas entendessem a importância da vacinação e passassem essa mensagem para a população. Esses líderes são muito poderosos e conseguem influenciar toda a comunidade. Não adianta eu, François, ir até o vilarejo e dizer para as pessoas que aquilo é bom. Precisamos engajar os líderes locais. Quando eles falam, as pessoas ouvem.
Após alcançar essa alta cobertura vacinal, qual o próximo grande desafio de vocês?
Sem dúvida alguma é melhorar o rastreamento do câncer de colo de útero. Atualmente, temos três maneiras de fazer esses exames preventivos. A primeira é o papanicolau. Apesar de ser muito utilizado na Europa e nas Américas, é um método muito caro e difícil de ser implementado em nossa realidade.
O segundo é a inspeção visual com ácido acético, também conhecido como IVA, que é barato e acessível. Porém, recentemente ele foi suplantado por uma terceira possibilidade: o teste de HPV, que passou a ser recomendado pela Organização Mundial da Saúde.
Estamos numa fase de planejamento para implementar esse exame que detecta o vírus. Após comprarmos os reagentes e as máquinas, vamos oferecer um treinamento a médicos para capacitá-los. Num momento posterior, precisaremos aumentar a nossa capacidade de tratamento, pois faremos mais diagnósticos.
Como vocês estruturaram todo esse projeto? Houve um intercâmbio com outros países?
Mais do que conversarmos com outras nações, nós tentamos aprender com outras experiências boas que já tínhamos em nossa própria terra. Por exemplo, temos ótimos programas de combate ao HIV e uma estratégia de vacinação infantil muito bem estruturada. No caso da vacina do HPV, foi adicionar mais um imunizante dentro de um sistema que já estava funcionando.
E hoje em dia vocês são procurados por outros países que tentam fazer algo parecido com a vacina do HPV?
Sim, alguns de nossos vizinhos já nos procuraram. Mas as realidades são distintas de Ruanda. Nosso país é pequeno e tem um acesso geográfico bom, o que facilita bastante a logística das vacinas. Além disso, cada vila tem seu próprio centro de saúde, com um programa comunitário estruturado. Algumas nações estão tentando implementar uma estratégia de vacinação inspirada na nossa. Porém, são projetos-piloto em cidades pequenas inicialmente, para depois tentar expandir a outros locais.
Antes de trabalhar com câncer, você fazia parte do programa de prevenção da aids de Ruanda. Você tirou lições dessa primeira experiência para o seu trabalho atual?
Claro que a gente usa alguns modelos e ideias que deram certo. Mas a diferença está no financiamento. Projetos de prevenção e tratamento da aids recebem dinheiro de muitas instituições. Há muitos parceiros envolvidos no controle do HIV na África. O problema é que o câncer não recebe tanta atenção assim. Boa parte de nosso orçamento vem do governo. Estamos tentando diversificar nossas receitas e sensibilizar mais as pessoas.
É curioso pensar como as pessoas ficam ansiosas por uma notícia sobre a “cura do câncer” ou a “vacina que bloqueia tumores”, quando na realidade já temos imunizantes capazes de fazer essa prevenção. O HPV é um exemplo disso. Como levar esse tipo de informação para a população?
Bom, evidências nós temos de sobra sobre a eficácia dessas vacinas. O que resta agora é trabalhar na educação da comunidade. E aí está a questão: precisamos fornecer às pessoas uma informação palatável, que todos consigam entender facilmente. É como pegar aquele dado científico e transformar em algo simples. A partir daí, devemos encontrar os meios de facilitar essa comunicação. Em Ruanda usamos as mídias, especialmente a televisão. Mas percebemos cada vez mais a relevância dos celulares e das redes sociais. Precisamos falar sobre assuntos de saúde no Facebook e no Whatsapp, que é onde as pessoas estão conectadas.
Capital: Kigali<br />
Tamanho: 26 mil km² (menor que o estado de Alagoas)<br />
Localização: África Oriental, faz fronteira com Uganda, Rep. Dem. do Congo, Burundi e Tanzânia<br />
População: 11 milhões de habitantes<br />
Línguas: kinyarwanda, inglês e francês<br />
PIB per capita: 2,090 dólares (164º entre os países do globo)<br />
Moeda: franco ruandês