Entrevista: se o cigarro sumisse, a DPOC seria uma doença rara
Pneumologista espanhol Marc Miravitlles comemora avanços contra a doença pulmonar obstrutiva crônica e relata desafios para reduzir índices da doença
O cigarro é o grande vilão por trás da DPOC (doença pulmonar obstrutiva crônica), segundo o pneumologista e pesquisador Marc Miravitlles, diretor de pesquisas sobre a condição no Hospital Vall d’Hebrón, em Barcelona.
O espanhol, que é coordenador das Diretrizes Espanholas para DPOC, visitou o Brasil no fim de fevereiro para falar de prevenção e tratamento desse problema respiratório que atinge cerca de 64 milhões de pessoas no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
A DPOC é a obstrução crônica da passagem do ar pelos pulmões, provocada geralmente pela fumaça do cigarro ou de outros compostos nocivos, como uso de fogão a lenha diariamente. Ela se instala após quadros persistentes de bronquite ou enfisema pulmonar.
Fumantes costumam achar normal tossir e não procuram ajuda, e os outros sintomas da doença, como fadiga e falta de ar sem a presença de crises de tosse com muco, não são muito associados a ela.
Em 2019, a DPOC provocou mais de 3 milhões de mortes no mundo. Para Miravitlles, é preciso uma união de forças para mudar esse panorama, começando pelas ações anti-tabagismo.
O espanhol defende ainda que o assunto seja mais falado entre médicos não especialistas, para que o diagnóstico ocorra mais cedo. Um clínico geral, por exemplo, deve medir a capacidade pulmonar de pessoas com distúrbios respiratórios com mais frequência.
Na linha das boa notícias, Miravitlles comemora a evolução dos medicamentos e o aumento da expectativa de vida das pessoas com DPOC. Ainda é desafiador, contudo, manter os pacientes motivados com o melhor aliado do tratamento: a atividade física.
VEJA SAÚDE: O senhor afirma que é preciso redefinir os sintomas da DPOC. O que é preciso mudar?
Marc Miravitlles: Primeiro, alguns sintomas, como tosse, coriza, expectoração e dispneia (falta de ar), são conhecidos, mas pouca importância é dada a eles. Eles podem indicar uma doença grave, mas ninguém os percebe da mesma forma que uma dor no peito ou outras queixas.
Quem já foi fumante ou mesmo quem não tenha tido uma exposição significativa ao tabaco precisa consultar um médico e fazer exames se tiver falta de ar e tosse que persiste.
Além disso, existem outros sintomas que são menos reconhecidos. Por exemplo, fadiga geral, e também a perda de peso, que não costuma ser tão atribuída à DPOC, mas pode acompanhá-la.
Há também pacientes que têm principalmente falta de ar, mas não tossem e não expectoram [soltam catarro].
Ou seja, não existe um padrão único, são fenótipos diferentes. É preciso dar mais importância a esses sintomas e conscientizar as pessoas sobre a relação deles a uma doença crônica.
O que é considerado um sintoma persistente?
Quando a pessoa sentir um sintoma pela primeira vez e ele durar por mais de três semanas. Esse seria mais ou menos o limite, mas a tosse da DPOC pode durar meses ou anos.
O que acontece é que a maioria dessas pessoas são expostas ao tabaco ou fumam, então não dão importância à tosse. Elas acham que é por causa do cigarro e consideram tudo normal. E até costuma ser, mas também pode não ser, então é preciso consultar um médico e entender o porquê disso.
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O desenvolvimento da DPOC depende de quanto a pessoa fuma ou por quanto tempo fumou?
Sim. Sem dúvida. Em geral, quanto maior a exposição ao tabaco, maior o risco da condição surgir e de ela ser mais grave.
Mas o impacto é muito diferente de pessoa para pessoa, como ocorre em relação ao abuso de bebidas alcoólicas, por exemplo.
A suscetibilidade individual é altamente variável. Há pessoas que fumam muito e não têm DPOC, e há pessoas que fumam menos e mesmo assim desenvolvem a doença.
Sempre tem quem diga que o avô fumou a vida toda e morreu com 90 anos de algo que não tinha nada a ver com cigarro. E é verdade. Mas ele teve muita sorte, além de uma boa genética. Isso não é normal.
Há outras causas de DPOC além do vício em cigarro?
O tabaco é a mais importante, mas não é a única. Estudos apontam que 20% dos portadores da doença nunca fumaram.
Entre eles estão os indivíduos que tiveram asma na juventude e não foram tratados adequadamente, e também os expostos à fumaça de lenha, o que é comum em vários países latino-americanos, principalmente mulheres que cozinham dentro de casa.
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Nos últimos dez anos, pesquisadores têm se interessado nas crianças que desenvolvem a doença. Podem fazer parte desse grupo as que nasceram com baixo peso, as prematuras e as que tiveram infecções respiratórias que causaram um mau desenvolvimento dos pulmões.
Mas essas situação são a minoria. Digamos que, de cada cinco casos, quatro ocorrem em fumantes, e um vem de outras causas como essa.
Por que o perfil considerado em maior risco da também precisa mudar?
Primeiro pelas mudanças relacionadas ao tabagismo. Até cerca de 20 anos atrás, os homens fumavam mais, mas as mulheres passaram a fazer parte desse grupo, e nelas a doença pode ser mais grave.
É que elas têm características um pouco diferentes. Os pulmões são menores, e a mesma dose de tabaco se concentra mais no órgão.
Outro motivo é que relatam menos expectoração e catarro, porque têm vergonha de tossir em público e engolem mais muco. Essa gravidade gera perda de qualidade de vida e aumenta o risco de outros problemas, como a depressão.
E o jovens que aderem aos “vapes” e ao narguilé? Por que não entram nesse grupo?
Porque nos falta perspectiva de tempo. Já vimos que há efeitos no pulmão e casos agudos, mas ainda não temos anos de acompanhamento o suficiente para ver se eles desenvolvem DPOC ou algo até pior.
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O que está claro é que o pulmão não foi feito para inalar coisas estranhas. Ele foi feito inalar apenas ar. Quem faz uso desses produtos certamente terá uma reação inflamatória no pulmão em algum nível, só não sabemos qual será a gravidade disso a longo prazo.
Se os cigarros sumissem da face da Terra, essa doença também desapareceria?
Com certeza não estaríamos aqui falando sobre isso.
Haveria algumas poucas pessoas sendo diagnosticadas, mas seria considerada uma doença rara.
O que é mais importante no tratamento do DPOC hoje?
O tratamento de qualquer doença crônica deve incluir uma alimentação adequada, atividade física e nesse caso, obviamente, parar de fumar.
Ter as vacinas em dia é importante, principalmente as da gripe, meningocócicas, herpes zoster e Covid.
A atividade física, que é uma reabilitação, é fundamental. Ela melhora o tônus muscular e ajuda a respirar melhor porque elimina secreções. É preciso definir um programa de exercícios ao longo de três meses, bem estruturado e com níveis diferentes de dificuldade.
A partir disso, a pessoa precisa se manter ativa. E o problema maior está aí: esses treinos devem ser individualizados e demandam recursos.
O médico precisa ajudar o paciente e mantê-lo motivado mesmo se não houver uma academia por perto, e encontrar caminhos para resolver essa questão.
Uma boa parte do tratamento fica nas mãos do paciente?
Sim, a atitude do paciente é fundamental porque é uma luta de longo prazo, para a vida toda. Tem que tomar remédio, fazer atividade física, parar de fumar… E tudo isso deve ser constante.
O prognóstico depende muito da gravidade, mas o tratamento medicamentoso evoluiu muito. E a pessoa sente a evolução quando se mantém ativa. Antes ela só subia um lance de escadas, e depois passa a subir dois ou três. Essa dedicação também previne crises e complicações, aumentando a sobrevida do indivíduo.
A expectativa de vida de quem tem DPOC subiu nos últimos anos?
Sim. Temos acompanhado grupos de pacientes de diferentes épocas, e observamos que as pessoas estão vivendo mais. Isso ocorre pela evolução no tratamento e novas terapias, mas também por outras medidas, como a variedade de vacinas e as políticas antitabagismo.
As pessoas que atendi há 25 ou 30 anos estavam muito mais debilitadas, no fim de suas vidas. Agora você vê pessoas com DPOC grave que acabam morrendo de outros problemas, como infarto, ou de alguma consequência da doença, como o câncer de pulmão. Podemos dizer que a qualidade de vida melhorou.
Outro ponto positivo é que os remédios são mais fáceis de administrar. Se antes era preciso tomar vários comprimidos diários, agora é um só, o que torna muito mais fácil a adesão à terapia.
O que ainda precisa ser mudar?
O fundamental é manter a luta contra o cigarro. Em muitos países isso foi bem feito, e as taxas da doença caíram. A outra parte diz respeito aos médicos, principalmente os clínicos gerais, que são os primeiros a receber esses pacientes.
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Eles têm de pensar que os sintomas que falamos não são leves ou triviais, e devem ser investigados para conseguirmos diagnósticos mais precoces.
É normal checarmos o colesterol, o peso, a pressão arterial e a glicemia do paciente, e deveria também ser natural medir a capacidade pulmonar.
É algo fácil, barato e não invasivo, que deveria fazer parte de um exame geral de saúde, mesmo que você esteja saudável.
Uma pessoa que faz um check-up ou vai ao médico anualmente teria que soprar o aparelho de espirometria pelo menos uma vez. Hoje se faz esse exame muito pouco, e resultados anormais podem indicar a DPOC.
O quanto um programa de reabilitação física pode trazer melhora?
Há estudos que medem esse avanço com o teste padrão da caminhada de seis minutos, com uma esteira e um cronômetro.
Uma pessoa da idade média de um paciente com DPOC pode caminhar 400 metros, algo assim. Após três meses de treinamento, ele pode melhorar essa distância em 20% ou 30%. O problema, como disse, é manter o programa.
Um estudo que conheço tem a ver com essa motivação. Foram feitos circuitos urbanos com cores diferentes. O verde era o mais fácil, o azul um pouco mais difícil, depois laranja e vermelho.
Essa dificuldade mudava conforme a distância e os desníveis. As pessoas eram instruídas a fazer o trajeto que conseguiam, sem se preocupar, mas, conforme elas viam melhora, mudavam para o nível superior e isso as incentivava muito. São estratégias desse tipo de precisamos.