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De boca costurada a tireoide de ovelha: o bizarro passado do tratamento da obesidade

Muito antes de sonharmos com Mounjaro e Ozempic, tentou-se de tudo um pouco para emagrecer de vez — às vezes com resultados catastróficos

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 20 Maio 2025, 20h00 - Publicado em 20 Maio 2025, 13h44
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Sutura na boca, tireoide de ovelha, pílulas explosivas: tratamentos para o excesso de peso do passado resultaram em fracassos e tragédias (Foto: GI/Getty Images)
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“A corpulência, quando em excesso, pode ser reconhecida como uma doença, limitando o exercício das funções biológicas básicas, com uma tendência a abreviar a vida em função de moléstias associadas”.

É com essa definição que o endocrinologista Bruno Geloneze, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), abre algumas de suas aulas sobre obesidade.

Mas tem um detalhe importante: a frase é do médico britânico Malcolm Fleming e integra um discurso sobre a natureza, as causas e a cura da “corpulência” para a venerável Sociedade Real de Londres. Mais importante ainda: a fala foi proferida em 1757 e publicada no periódico da entidade em 1760.

“Com alguns ajustes e a troca do termo ‘corpulência’ por ‘obesidade’, não temos uma definição tão distante do problema de saúde pública que enfrentamos hoje”, contextualiza Geloneze.

O professor se vale desse documento histórico para mostrar que o olhar da medicina para o excesso de peso não vem de hoje. E, se agora vemos uma nova geração de medicamentos com efeitos expressivos no emagrecimento, com eficácia e segurança comprovadas em estudos controlados, o passado do tratamento da obesidade já teve de tudo um pouco, inclusive soluções bizarras e perigosas.

 

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Reprodução de tratado sobre a corpulência no século 18 (Foto: Welcome Collection/Reprodução)

Boca suturada

Séculos antes de os médicos sonharem com Mounjaro e Wegovy, as intervenções para a obesidade, uma condição médica só realmente entendida e definida no desenrolar do século 20, oscilaram entre poções alquímicas e saídas drásticas.

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Um dos casos mais simbólicos (e chocantes) registrados nos anais da medicina remonta ao século X e envolve um monarca medieval na Península Ibérica. Sancho, o Gordo (935-967), então rei de Leão (território que hoje integra a Espanha), vivia muito acima do peso, como delata seu apelido evidentemente, nem se sonhava com gordofobia à época.

A autoridade não conseguia montar a cavalo nem pegar em armas e acabou perdendo o trono numa conjuntura de instabilidade. A fim de recuperar o vigor e a coroa, o rei viajou até Córdoba para se consultar com um médico judeu.

O doutor lhe prescreveu o seguinte tratamento ao longo de seis meses: suturar seus lábios para restringir a entrada de comida e alimentá-lo à base de um preparado de ingredientes, contendo inclusive ópio.

(Como se vê, a ideia por trás de procedimentos radicais e fórmulas mágicas para ficar com o corpo em forma é um tanto quanto antiga).

Conta-se que dom Sancho voltou cavalgando a Leão e, com o apoio de aliados, retomou seu trono. Mas, pouco tempo depois, supostamente curado da obesidade, morreu envenenado com uma maçã durante uma expedição a Portugal.

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O causo, registrado em livros, é recuperado por Geloneze para mostrar como a busca por tratamentos para o excesso de gordura corporal não é algo exatamente recente. Pelo contrário.

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Retrato do rei Sancho I, o Gordo, submetido a uma sutura da boca para tratar o excesso de peso (Foto: La Inciclopedia/Reprodução)

Tireoide de ovelha

A ciência evolui a passos lentos e, de vez em quando, dá saltos, como se viu na pandemia de covid. E a história do tratamento da obesidade caminhou devagar, com alguns percalços pelo trajeto.

Um dos motivos é que a compreensão biológica dessa condição hoje encarada como uma doença crônica só foi delineada nas últimas décadas, resultado de muita pesquisa em laboratórios e fora deles.

Geloneze chama a atenção para as tentativas terapêuticas que resultaram em fracassos e tragédias devido a seus efeitos colaterais ou danos aos pacientes.

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Na década de 1890, por exemplo, médicos decidiram testar um extrato de tireoide extraída de ovelhas. Intuía-se que o hormônio produzido por essa glândula no pescoço estaria envolvido na regulação do peso. E, realmente, quando se administrava a substância a cobaias, elas podiam emagrecer.

Ocorre que, nos experimentos com humanos, embora os pacientes perdessem peso, desenvolviam reações adversas severas dessa injeção hormonal: arritmia, taquicardia, falência cardíaca… Melhor parar por aqui!

Embora ainda hoje tenha gente tomando hormônio tireoidiano (sintético) para emagrecer, a prática é contraindicada pelos médicos a reposição só entra em cena em caso de deficiência confirmada por exames.

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Entre bombas e pílulas arco-íris

Nos anos 1930, os médicos resolveram arriscar um composto chamado dinitrofenol, que sabidamente interfere no balanço energético. Curiosamente, a mesma substância química e suas variações aparecem na formulação de tintas, pesticidas e até explosivos!

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Deu ruim também: casos de catarata e alterações nervosas obrigaram os especialistas a abandonar a ideia, muito embora tenham insistido em testar o componente até pouco tempo atrás.

Pouco tempo depois, foi a vez da anfetamina. Trata-se de uma classe de estimulantes que deixa o indivíduo mais ativo e pode ter reflexos no peso. Mas houve um revés: a dependência da droga, entre outros imbróglios mentais.

(Décadas mais à frente, uma parente da anfetamina, a sibutramina, seria utilizada com resultados melhores para a obesidade, apesar das contraindicações).

Os anos 1950 marcam as primeiras tentativas de intervenções cirúrgicas para pacientes muito acima do peso a versão primitiva da bariátrica. Só que a técnica disponível gerava tantos problemas que só com os avanços no procedimento o bisturi se tornaria uma saída segura e eficiente para a obesidade.

A indústria farmacêutica, em paralelo, corria atrás da sua “bala de prata”. E a suposta sacada de um grupo de pesquisadores foi juntar a anfetamina com hormônios da tireoide num comprimido colorido.

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Nascia a “pílula arco-íris“, que, em 1967, foi banida devido a mortes associadas ao uso. É que a combinação dos seus ingredientes podia levar literalmente a um piripaque nenhum pote de ouro atrás do arco-íris.

Perigo para a cabeça

Na década de 1970, ganhava força a noção de que o cérebro estava envolvido com o controle da fome e da saciedade. Então por que não apostar em algo que mexesse com os neurônios? Ideia boa, execução complexa.

Um laboratório investiu num remédio chamado Amironex, que, como o nome sugere, é um anorexígeno isto é, induz a perda de peso. Não rolou: foram notificados casos de hipertensão pulmonar (uma complicação grave) entre os pacientes que tomaram a droga.

Os cientistas continuaram se debruçando sobre esse caminho terapêutico, acreditando que seria questão de tempo e tecnologia até achar a medicação perfeita. Nessa linha, tentou-se combinar dois remédios anorexígenos em um só comprimido.

Era o fen-fen, apelido derivado dos seus princípios ativos, fenfluramina e fentermina, que influenciavam a liberação de dois neurotransmissores, a serotonina e a noradrenalina. Mas casos reportados de insuficiência da válvula cardíaca fizeram o produto ser deixado de lado.

Nos anos 2000, uma promissora alternativa se desenhou no horizonte. Descobriu-se que nosso cérebro tem um sistema mediado por moléculas produzidas pelo corpo que lembram muito os componentes da maconha: os endocanabinoides. Ora, esse sistema também interfere na vontade de comer sim, a “larica” experimentada pelos usuários de cannabis tem a ver com essa história.

Pois uma farmacêutica conseguiu criar uma molécula que se intrometia nessas vias nervosas para domar o apetite e ajudar a perder sobretudo gordura abdominal a mais perigosa para a saúde. Era o rimonabanto, exaltado pela imprensa à época como “pílula antibarriga”.

O medicamento chegou a ser aprovado pelos órgãos regulatórios e tinha demonstrado efeito positivo no peso. Porém — e que porém! — as autoridades passaram a registrar casos de depressão e ideação suicida vinculados ao uso. Foi o fim: o remédio foi suspenso do mercado.

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Pesquisas em neurociência ajudaram a entender melhor a obesidade e seu tratamento (Foto: Hryhorii Bondar/Getty Images)

Hoje e amanhã

Outros eventos marcaram a busca por um tratamento eficaz e seguro para a obesidade. A cirurgia bariátrica evoluiu e se tornou uma opção. Depois, novos medicamentos frutos de descobertas que um dia podem render um Prêmio Nobel passaram nos testes e chegaram ao público.

Hoje vivemos a era de Ozempic e Mounjaro, com a perspectiva de termos drogas ainda mais potentes para a perda de peso. E essa nova geração de medicamentos também remonta a uma origem curiosa: foram inspirados em uma molécula sintetizada por um lagarto que só se alimenta três vezes ao ano.

É assim que caminha a ciência. Por vezes dando recuos. Às vezes vivenciando episódios traumáticos. Tantas vezes produzindo revoluções com ganhos reais para a população. A história do tratamento da corpulência, ou melhor, da obesidade, não é diferente.

* Esta reportagem foi concebida após participação do repórter no curso “A ciência da medicina da obesidade para jornalistas científicos”, promovido pela Unicamp sob a coordenação dos professores Bruno Geloneze, Lício Velloso e Mario Saad, com o apoio da Novo Nordisk

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