Em sua clínica na Califórnia, nos Estados Unidos, sempre que atende um novo paciente, o médico indiano Suhas Kshirsagar costuma trocar o convencional “Em que posso ajudar?” pelo inusitado “O que você faz a cada hora do dia?” Autor do recém-lançado Mude Seus Horários, Mude Sua Vida (Editora Sextante), ele afirma que o “quando” comemos, dormimos e malhamos é tão importante para o nosso bem-estar quanto o que consumimos, as horas que dormimos e a carga na academia.
O horário de nossas atividades, explica ele, determina quase tudo: do peso à memória, da resistência à concentração, do humor ao condicionamento físico. “Quando os pacientes relatam dificuldade para perder peso, não têm disposição ou dormem mal, simplesmente respondo: o problema não é você, são seus horários”, afirma Kshirsagar, que busca fazer uma ponte entre a medicina ayurvédica, de tradição indiana, e as descobertas da ciência ocidental.
E ele não é o único adepto da cronobiologia, o ramo que estuda como funciona e reage nosso relógio biológico. O psicólogo americano expert em sono Michael Breus relata que a recuperação de seus pacientes com insônia e distúrbios afins deu um salto ao incorporar ao tratamento ajustes nos horários de comer, se movimentar, ver TV e, claro, repousar. “Um bom timing é tão poderoso que você pode mudar a vida de qualquer pessoa em praticamente todos os aspectos”, diz o autor de O Poder do Quando (Editora Fontanar).
Embora a mensagem e o título desses livros possam soar a autoajuda, o fato é que a cronobiologia tem muito amparo científico. Seu objeto de atenção é o ritmo circadiano. “É o nosso ritmo biológico, natural, que opera em um ciclo de aproximadamente 24 horas”, traduz o fisiologista José Cipolla Neto, da Universidade de São Paulo (USP), uma das referências no assunto no país.
Nem tudo no organismo, porém, opera nessa frequência. Alguns processos, como a secreção de insulina (que permite à glicose virar combustível dentro das células) ou a produção de plaquetas (que atuam estancando ferimentos), obedecem a ritmos diferentes do ciclo convencional das 24 horas. Mas voltando ao Big Ben do corpo: dependendo do período do dia ou da noite, nossas engrenagens são programadas para fazer coisas bem distintas. Pela manhã, liberamos cortisol, que nos faz pular da cama; à noitinha, melatonina, que nos entrega ao sono.
A cronobiologia chegou ao Brasil em 1981, quando a USP inaugurou um grupo dedicado a investigar os ritmos biológicos. À medida que as pesquisas avançavam por aqui e no mundo, médicos de diversas especialidades passaram a empregar seus princípios na prevenção, detecção e tratamento de doenças. A cardiologia é um bom exemplo. “Se o médico sabe que infartos, derrames e morte súbita tendem a ocorrer mais pela manhã, fica mais fácil evitá-los”, conta o médico Protásio Lemos da Luz, da Sociedade Brasileira de Cardiologia.
Enquanto ataques do coração são mais comuns de manhã devido ao aumento de alguns hormônios, crises de asma dão mais as caras de madrugada, quando diminui o calibre dos brônquios que levam oxigênio aos pulmões. “Assim, se o pico da doença é às 4 da manhã e o remédio broncodilatador leva oito horas para fazer efeito, o ideal é prescrevê-lo às 20 horas”, ilustra o pneumologista José Manoel Jansen, organizador do livro Medicina da Noite: Da Cronobiologia à Prática Clínica (Editora Fiocruz).
O conhecimento na área e sua relevância cresceram a ponto de três americanos levarem, em 2017, o Prêmio Nobel de Medicina por seus estudos sobre o ritmo circadiano. “A cronobiologia pode nos ajudar a levar uma vida mais saudável. Para isso, devemos respeitar nossos ritmos e manter o organismo sincronizado com o ambiente”, resume a bióloga Vânia D’Almeida, da Universidade Federal de São Paulo.
Desde os tempos em que nossos antepassados moravam em cavernas e precisavam sair para caçar o almoço, os seres humanos são animais diurnos. Em outras palavras, trabalham de dia e descansam à noite. “Mas, enquanto alguns dormiam mais cedo, outros permaneciam acordados até altas horas. Isso aumentava as chances de eles não serem atacados por predadores”, relata o neurocientista John Fontenele Araújo, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É daí, provavelmente, que se forjou a base comportamental e biológica que molda as pessoas diurnas e noturnas da nossa era.
De um lado, os madrugadores, caso do dalai-lama, do apresentador Silvio Santos, da modelo Gisele Bündchen e do político americano Benjamin Franklin (1706-1790), autor da frase “Deus ajuda a quem cedo madruga”. “Acredita-se, por preconceito, que as pessoas que acordam cedo trabalham mais e melhor do que as que acordam tarde”, diz o fisiologista Luiz Silveira Menna Barreto, professor da USP e um dos precursores da cronobiologia no Brasil. A ciência pondera que as coisas não funcionam assim.
Do outro lado, temos os notívagos, entre eles o humorista Jô Soares, o compositor Caetano Veloso e o pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973). “Desde quando tinha 10 anos, nunca consegui dormir cedo. Gostava de ficar lendo na cama. Hoje em dia, durmo por volta das 5 da manhã e acordo ao meio-dia”, já relatou Jô. “Os matutinos acordam e dormem cedo e estão alertas pela manhã e sonolentos à tarde. Já os vespertinos acordam e dormem mais tarde e costumam estar dispostos à noite”, define a fisiologista Gisele Akemi Oda, da USP.
A maior parte da população, porém, não se encaixa em nenhum dos dois extremos. São os chamados mistos ou intermediários. Tendem a dormir por volta das 23 horas e acordam lá pelas 6 ou 7. A classificação dos indivíduos quanto ao ritmo biológico se chama cronotipo. E, pensando nesses termos, não há nada pior do que obrigar um jovem vespertino a estudar pela manhã e um trabalhador matutino a dar expediente à noite.
É por essa razão que a Associação Brasileira do Sono (ABS) lançou a campanha “8h30 em 2020”, que defende a mudança do início das aulas dos alunos do ensino médio para as 8h30. Lá fora, a cidade de Seattle foi a primeira dos EUA a começar suas aulas mais tarde: desde 2015, mudou o horário de 7h50 para 8h45. Deu certo! Os alunos passaram a tirar notas mais altas e a faltar menos. “A entrada mais tardia de estudantes adolescentes em sala de aula melhora tanto a qualidade do sono quanto o aprendizado”, afirma a bióloga Cláudia Moreno, vice-presidente da ABS.
Os cronobiologistas ainda não chegaram a um consenso sobre o que determina o cronotipo de cada um. A maior parte entende que está no DNA. Mas há quem defenda a tese de que isso seria influenciado por fatores ambientais. Em um ponto, porém, todos concordam: ele varia ao longo da vida. Os bebês costumam ser matutinos; os adolescentes, vespertinos; os adultos tendem para intermediários; e os idosos voltam a ser matutinos. “Você não vai ter o mesmo cronotipo a vida toda. Mas, dos 21 aos 65, seu cronotipo será o mesmo. E, qualquer que seja ele, você precisa entrar no ritmo correto o mais depressa possível”, encoraja Breus.
Ele é do tamanho de um grão de arroz, tem cerca de 20 mil neurônios e está localizado no hipotálamo, mais ou menos no centro do cérebro. Seu nome científico é núcleo supraquiasmático (NSQ), mas pode chamá-lo de sistema temporizador ou circadiano. Ou até usar seu apelido mais pop: relógio biológico. Mas há quem desaprove a analogia. “O relógio marca um tempo físico que não é ajustável pelas condições ambientais, como o dia ou a noite”, justifica o biólogo Mário Pedrazzoli Neto, da USP.
Denominações à parte, é esse minúsculo núcleo que controla, com precisão, tudo que acontece no corpo: a frequência cardíaca, a pressão arterial, a temperatura, a produção de hormônios, e por aí vai. Todas as manhãs, quando abrimos os olhos e vemos a luz do sol, o NSQ avisa as células e sistemas que é dia outra vez. E assim levantamos e vamos trabalhar, estudar ou curtir o fim de semana. “O NSQ é o relógio do cérebro. Ou, talvez, devêssemos dizer que é o maestro do cérebro. Todas as células do corpo tentam dançar conforme a música regida por ele”, compara o indiano Suhas Kshirsagar.
Não é só a expressão “relógio biológico” que é contestada por alguns dos estudiosos da cronobiologia. A ideia de um único marcador de tempo, localizado em nosso cérebro, também já foi superada. “Todas as células do corpo têm genes que regem seu ciclo regularmente”, ensina Menna Barreto. Hoje em dia, o que se sabe é que há um relógio central no cérebro e milhões de relógios periféricos espalhados pelo organismo. Eles trabalham em sincronia. Ou, pelo menos, deveriam.
E cabe a nós a tarefa de mantê-los sincronizados. Como? Procurando comer, dormir, tomar remédios e exercitar-se, entre outras atividades diárias, sempre no mesmo horário. Se, em alguns dias, almoçamos às 11h30 e, em outros, às 13h30, nossos relógios, central e periféricos, podem entrar em parafuso. “Não existe horário ideal para comer. Isso varia de pessoa para pessoa. O importante é ter regularidade no horário das refeições”, desmitifica o Endocrinologista Mário Kehdi Carra, da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica.
Sim, o “quando” você se alimenta é tão determinante para perder peso e entrar em forma quanto “o que” se ingere. Essa é a conclusão do neurocientista americano Frank Scheer, do Hospital Feminino de Brigham, em Massachusetts. Em um experimento já clássico, ele e sua equipe monitoraram 420 voluntários com excesso de peso que, durante 20 semanas, seguiram um programa baseado na dieta mediterrânea — com frutas, verduras e legumes, peixes, azeite de oliva etc. Metade dos participantes almoçou mais tarde (depois das 15 horas) e o restante, mais cedo (antes das 15). O grupo que se alimentou mais cedo perdeu mais peso e de forma mais rápida.
“O recomendado é fazer refeições maiores no café da manhã e no almoço, e menores no jantar”, sintetiza o médico Josivan Lima, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. “Quanto mais tarde comer, pior será a digestão”, completa. É que à noite, a menos que você seja muito notívago, o NSQ manda entrarmos naquele modo economia de energia.
Você já deve ter ouvido falar na expressão “jet lag”, não? Pior: já deve ter experimentado seus efeitos depois de viajar para longe, muito longe, de avião. Privação de sono, ganho de peso e alteração de humor são alguns dos sintomas. Mas acredite: você não precisa entrar em um voo para sentir algo parecido. Basta que seu relógio biológico não esteja sincronizado ao seu relógio social.
Visualize a situação: você acorda todos os dias às 6 horas. No sábado e no domingo, por razões óbvias, decide acordar às 10. Quando chega segunda, e precisa levantar de novo às 6, simplesmente não consegue. “Quando há incompatibilidade entre o relógio biológico e o social, o corpo todo padece. Estudos apontam altos níveis de estresse, queda no sistema imune, ganho de peso, danos cognitivos, maior risco de acidentes…”, enumera o cronobiologista Robert Matchock, da Universidade Estadual da Pensilvânia, nos EUA.
Quando o desajuste é curto, como em um fim de semana ou na entrada do antigo horário de verão, o relógio biológico se realinha em dias ou semanas. Mas, quando é de longa duração, caso do trabalho noturno ou, o pior dos mundos, turnos rotativos ou alternados, o estrago costuma ser maior. “O homem nasceu para trabalhar de dia e descansar à noite. Quando se vê obrigado a trabalhar de noite e descansar de dia, cai doente. Afinal, estamos falando de 500 mil anos de evolução da espécie”, analisa o professor Cipolla Neto. Não à toa, pesquisas associam anos de batente noturno a maior propensão ao câncer.
É claro que não é tão simples cravar o horário ideal para cada tarefa do dia ou da noite. Sabemos que praticar atividade física, por exemplo, melhora as noites de sono e a saúde em geral. Mas em que período suar a camisa? “A melhor resposta é: depende. Depende do cronotipo da pessoa, do tipo de exercício, do efeito desejado… Uns servem para relaxar, outros para queimar calorias, e assim por diante”, diz a biomédica Luísa Klaus Pilz, do Laboratório de Cronobiologia e Sono do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Um conselho geral dado pelos especialistas é tentar respeitar um intervalo de três horas entre a malhação e a hora de dormir.
Agora, o tempo de tolerância até embarcar no sono muda se a ideia é ficar de frente para qualquer tipo de tela. Se você pretende se deitar às 23 horas, a recomendação é sair da internet ou apagar a TV uma hora antes. E nem um minuto a mais. “A exposição à luz, natural ou artificial, inibe a produção de melatonina, o hormônio do sono”, justifica o fisiologista Fernando Louzada, coordenador do Laboratório de Cronobiologia Humana da Universidade Federal do Paraná.
Varar a madrugada até terminar aquela pendência do trabalho? De preferência, não. Devorar a pizza que sobrou do domingo? De jeito nenhum. Maratonar a última temporada da sua série? Deixe para outra hora! “Se você for para a cama mas não conseguir pegar no sono em 30 minutos, levante-se, faça alguma atividade relaxante, como ler um livro, e só retorne quando já estiver ensonado”, aconselha o biomédico Gabriel Pires, do Instituto do Sono, em São Paulo. Aí, sim, você pode desligar e se recarregar, porque, em algumas horas, a manhã já vem e seu despertador interno estará pronto para tocar.
Breve história da cronobiologia
1729: Um astrônomo francês observa que certas plantas abrem e fecham suas folhas no mesmo horário, ainda que estejam num porão.
1814: Pai da cronobiologia, o francês Julien-Joseph Virey introduz o termo “relógio biológico” em um trabalho sobre ritmos do corpo.
1879: Thomas Edison inventa a lâmpada elétrica e muda a relação da nossa espécie com a noite e o sono — desajustes viriam daí.
1959: O médico romeno Franz Halberg cria a expressão “ritmo circadiano” depois de observar mudanças no sangue de camundongos.
1962: O francês Michel Siffre passa dois meses em uma gruta, sem nenhuma referência de tempo. Ao sair, pensou ter ficado 25 dias.
1981: A Universidade de São Paulo cria o primeiro grupo de pesquisa nacional a estudar e difundir o ritmo circadiano e seus impactos na saúde.
2017: Três cientistas americanos ganham o Nobel de Medicina por descobrir que todos os seres vivos têm relógio biológico.
Conceitos-chaves
Cronobiologia: a disciplina surgiu no século 19 e avançou mesmo no século 20. Abrange estudos sobre os ritmos biológicos de todos os seres vivos (entre plantas e animais) e como alterações nesse processo influenciam a saúde.
Jet lag social: termo criado pelo neurocientista alemão Till Roenneberg, significa um desajuste entre seu relógio biológico e sua rotina em casa e no trabalho. No curto prazo, pode provocar cansaço e irritação. Lá na frente, doenças.
Cronopatologia: embora não seja uma regra, alguns problemas costumam se manifestar em horários predeterminados: rinite (das 6 às 12 horas), artrose (18 horas), depressão (à noite) e gastrite (das 23 à 1). Reconhecer isso ajudaria a intervir no momento certo.
Cronoterapia: também conhecida como cronofarmacologia, avalia a hora certa para prescrever alguns remédios. Seu objetivo é maximizar os poderes terapêuticos e minimizar seus efeitos colaterais. Medicamentos para pressão e tireoide são exemplos da tática.
Qual é o seu cronotipo?
Entenda como a cronobiologia nos divide:
Matutino (12% das pessoas)
Esse é o perfil de quem dorme e acorda cedo. Mal levanta e já esbanja bom humor. Em geral, o indivíduo fica mais disposto pela manhã. Ao anoitecer, vem a sonolência. Não suporta ficar acordado até tarde.
Vespertino (8%)
Vai pra cama e desperta mais tarde. Seu pico de produtividade ocorre no início da noite. Por dormirem menos do que precisam, os vespertinos podem cochilar mais durante o dia e abusar do café. E amam ficar na cama nos fins de semana.
Intermediários (80%)
Também chamados de mistos, representam o grosso da população adulta. Conseguem se ajustar às mudanças de horário com mais facilidade. Em geral, não têm preferência por horário para estudar ou trabalhar. Mas, ainda assim, não podem se descuidar.
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