Covid-19: como interpretar casos de morte depois da aplicação da vacina
Uma morte APÓS a imunização contra o coronavírus não significa que ela foi causada PELA imunização. Veja o que a ciência diz sobre o assunto
“Enfermeiro morre de Covid-19 depois de receber a primeira dose da vacina”. “Vacina pode provocar coágulos sanguíneos e é suspendida em países europeus”. “Cantor morre mesmo com duas doses”. O registro de óbitos após a vacinação pode gerar desconfiança e medo. Mas o que está por trás deles?
Há várias explicações. A primeira delas é que é possível desenvolver a doença mesmo depois da picada. “A pessoa pode já estar infectada quando receber a vacina ou se infectar antes de desenvolver imunidade, o que só acontece entre 15 e 28 dias após segunda dose”, introduz a pediatra Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). Nessa situação, o agente infeccioso teria entrado no organismo antes de o imunizante ter tempo de gerar uma proteção.
Outra possibilidade é a de que as doses não tenham produzido o efeito esperado. Sim, nenhuma vacina é 100% eficaz. Em inglês, esse lance de azar é chamado de breakthrough. E, na verdade, sua ocorrência não depende só da eficácia. Para explicar, vamos pegar emprestada uma analogia feita por Natália Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC), em seu quadro na rádio CBN.
Natália compara o potencial de uma vacina o de um goleiro de futebol. Para saber se um goleiro é bom, vemos o histórico de jogos e analisamos quantos gols ele toma. Se defende a maioria das bolas, sua chance de pegar as próximas é maior, mas ainda assim ele está sujeito a tomar gols.
E não só por não ser impenetrável, como nenhum jogador é, mas porque seu sucesso depende da defesa do time. Se os zagueiros são ruins, mais bolas chegam a ele, o que aumenta mais a chance de uma alcançar a rede. Com as vacinas é a mesma coisa. “Nesse caso, a defesa seriam as outras medidas de prevenção, como usar máscaras e não participar de aglomerações”, explica a epidemiologista Denise Garrett, vice-presidente do Instituto Sabin, nos Estados Unidos.
Em um país onde a pandemia está descontrolada e a aderência ao distanciamento é baixa, naturalmente ocorrerão mais infecções entre os vacinados (e, consequentemente, mais mortes). O Chile é um exemplo disso. Com a campanha de vacinação andando rápido no país, o pessoal e o governo relaxaram. Só que, assim como nós, os vizinhos não chegaram a controlar de vez a transmissão do Sars-CoV-2. Assim, houve uma aceleração do número de casos mesmo com a distribuição das doses, e os chilenos enfrentam, agora, a pior fase da pandemia.
Isso reforça quanto é importante manter o restante dos zagueiros em campo até que a maior parte do país esteja, enfim, imunizada (a ponto de reduzir expressivamente o número de bolas que chegam ao gol).
As reações adversas graves das vacinas
Agora vamos para outra seara, que é a dos relatos de efeitos colaterais sérios provocados pelas vacinas, e que poderiam inclusive matar. É importante esclarecer que nenhum óbito até agora foi comprovadamente associado a qualquer dose contra a Covid-19.
O que tivemos foram associações das doses com duas categorias de eventos considerados muito raros (notados em menos de 0,01% dos imunizados), que seguem em investigação.
Primeiro, algumas dezenas de indivíduos que receberam as vacinas de RNA mensageiro, como as da Pfizer e da Moderna, tiveram uma reação anafilática, quadro alérgico grave e contornável, que acontece minutos depois da aplicação. A taxa de eventos do tipo foi de 11,5 casos a cada milhão de imunizados, segundo o Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos, com nenhuma morte registrada. Como já explicamos neste texto, para por em perspectiva, se esse mesmo milhão contraísse Covid-19, ao menos 17 mil morreriam.
Mais recentemente, tromboses graves foram associadas às vacinas da AstraZeneca e da Janssen. Na Europa, 18 pessoas morreram, mas não está confirmado que o problema de fato é desencadeado pelos imunizantes. Os Estados Unidos fizeram uma pausa para avaliar os casos relatados com a dose da Janssen, uma etapa normal da vigilância pós-vacina.
“O que se notou é que alguns vacinados tiveram um quadro semelhante à trombocitopenia induzida por heparina, anticoagulante usado em âmbito hospitalar. O fenômeno ocorre quando alguma substância induz a produção de anticorpos que atacam as plaquetas do sangue, levando à formação dos trombos”, explica a imunologista Cristina Bonorino, professora da Fundação Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre.
Além disso, medicamentos eventualmente também desencadeiam coágulos, como as pílulas anticoncepcionais. “Ainda não se sabe, por exemplo, se as pessoas que tiveram tromboses estavam recebendo alguma droga que aumentava o risco”, explica Cristina.
Mesmo se o elo for comprovado, seria um evento adverso considerado extremamente raro. Portanto, não motivaria a suspensão da vacina, ainda mais em meio a uma pandemia descontrolada. A decisão de países como a Áustria, que baniu o produto da AstraZeneca, é considerada temerária pelos cientistas.
Uma possibilidade razoável em tempos de necessidade seria redirecionar a dose para o público onde o risco parece menor. A Alemanha, por exemplo, anunciou que distribuirá a fórmula da AstraZeneca preferencialmente para maiores de 60 anos, porque os casos europeus foram descritos em mulheres em idade fértil.
A Agência Europeia de Medicamentos, a Organização Mundial de Saúde e o próprio Programa Nacional de Imunizações do Brasil concordam que as doses da AstraZeneca devem continuar sendo aplicadas, com um aviso na bula alertando para a possibilidade do risco “muito raro” de um coágulo.
Essa probabilidade, aliás, é bem menor do que a de sofrer com uma trombose desencadeada pelo próprio coronavírus. “Cerca de 17% das pessoas com Covid-19 podem ter o problema”, compara Isabella. Um estudo recente, publicado pela Universidade de Oxford, calcula que o risco de coágulos oferecido pela doença é até dez vezes superior ao descrito com sua vacina.
É uma questão de pesar benefícios com riscos, o que inclusive é feito com todo tratamento médico.
Como saber se alguém morreu por causa da vacina?
Todo evento inesperado deve ser notificado para, então, deflagrar uma investigação. Essa notificação deve ser feita de preferência na Unidade Básica de Saúde onde ocorreu a aplicação. O profissional que recebe a queixa preenche informações como idade, sexo, doenças pré-existentes e detalhes do evento adverso. Todas as fichas são revisadas pela vigilância das secretarias municipais e estaduais de saúde, e os casos graves e óbitos são discutidos todas as semanas por um comitê formado pelo Ministério da Saúde, Anvisa e outras entidades.
Quando há algum motivo evidente para o óbito, como um idoso com outras condições de saúde, ou a pessoa contraiu Covid-19, fica mais fácil descartar a ligação com os imunizantes. Agora, no caso de algo inesperado como a trombose, é mais complicado. “Primeiro se compara a incidência do problema em questão entre os vacinados e na população em geral”, explica Cristina. Se a taxa for igual, isso indica que pode não haver relação entre uma coisa e outra.
A partir de um processo de eliminação de outras possíveis causas, os cientistas tentam verificar a plausabilidade de a reação ser de fato decorrente da vacina. Se isso ocorrer (como no caso da trombocitopenia), coloca-se o aviso de possível risco na bula enquanto os estudos seguem em andamento.
Para dar ideia de quão complexa é a investigação, a vacina da gripe que protege contra o H1N1 é aplicada há mais de dez anos e, desde então, suspeita-se que possa causar Síndrome de Guillain-Barré, um quadro neurológico. A reação adversa consta na bula, mesmo que até hoje o elo não tenha sido comprovado e até já desmentido em um estudo publicado no British Medical Journal.
Voltando à Covid-19, o último boletim do Ministério da Saúde aponta que a grande maioria das reações relatadas até agora não são graves e afirmou que os 139 óbitos que ocorreram após a vacinação não foram provocados por ela. Ora, milhões de brasileiros já receberam alguma dose contra o coronavírus. E, em um grupo tão grande, é esperado que algumas pessoas morram por qualquer causa.
Transparência também é ponto-chave
Como manter a confiança na estratégia no meio de tanto disse-me-disse? O primeiro passo é ser cristalino com os fatos, contextualizando-os. Ora, nenhum imunizante (contra nenhuma doença) é 100% livre de efeitos colaterais ou 100% eficaz.
“Se não formos transparentes, corremos o risco de abalar a confiança da população nos imunizantes”, aponta Denise.
A Coronavac é o exemplo disso. No primeiro anúncio de sua eficácia, o Instituto Butantan e o governo de São Paulo afirmaram que o produto tinha 100% de eficácia na prevenção de mortes e casos graves. Só que esse número foi extraído de um grupo muito pequeno de voluntários, o que não garantia sua confiabilidade.
“Na época, os dados não sustentavam essa conclusão, e agora estamos vendo que não é mesmo bem assim”, comenta Denise. O Instituto Butantan agora anuncia que a eficácia em prevenir casos que requerem assistência médica está “entre 83,7% e 100%”, baseado em estudo feito com cerca de 12 mil pessoas, a ser publicado no periódico The Lancet.
As pesquisas apontam que tomar a Coronavac reduz pela metade o risco de contrair Covid-19 e derruba ainda mais a probabilidade de morrer ou sofrer com uma versão grave, mas não zera essa possibilidade. O vaivém de anúncios contraditórios contribui para minar a confiança na ciência e nas vacinas.