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Cannabis medicinal para autismo: o que a ciência já sabe

Faltam estudos robustos que embasem a prescrição de maconha medicinal para o tratamento do autismo - mas há quem use para aliviar sintomas

Por Ingrid Luisa
Atualizado em 11 jan 2024, 11h44 - Publicado em 11 jan 2024, 11h42

Vinicius (nome alterado para preservar o entrevistado) tinha 9 anos quando começou a apresentar uma agressividade sem precedentes. O garoto, autista com grau de suporte nível 3, apresenta dificuldade de comunicação (ele ainda não fala) e aprendizado. Mesmo assim, não era uma criança agressiva, e com os pais sempre se mostrou carinhoso.

Mas, na pré-puberdade, Vinicius começou a mudar: estava mais irritado e agitado. Muitas vezes puxava o cabelo da mãe, entre outras atitudes.

Após seis tentativas com medicamentos diferentes que não surtiram efeito, seu pai resolveu foi para o YouTube e, aí, soube da possibilidade de dar extrato de cannabis para acalmar.

Depois de entrar num grupo do WhatsApp sobre o tema, o pai conseguiu o contato de um neuropediatra que prescrevia o medicamento. E levou Vinicius lá.

A cannabis não é um milagre, ela não resolve o autismo. Mas mães de filhos autistas que não obtiveram benefícios com as medicações tradicionais sem benefício começaram a relatar que o extrato de cannabis havia sido a melhor coisa para os filhos delas até o momento”, afirma o neuropediatra Joniel Soares, médico de Vinicius. “Após diversos relatos assim, comecei a considerar essa opção”, completa.

Vinicius começou a receber o extrato à base de cannabis, e teve uma melhora no comportamento. Ele se tornou menos agressivo e até aceitou ser tocado e ficar próximo de outras familiares que não os pais.

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Mas, claro, relatos de caso positivos podem ter vieses. Então, em que pé está a ciência e o uso medicinal de cannabis entre pessoas com autismo?

+Leia também: A redescoberta do autismo

Primeiro: o que é o TEA?

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é resultado de um desenvolvimento atípico do cérebro. De acordo com o DSM 5 (quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais), para receber o diagnóstico de autismo, a pessoa precisa apresentar no mínimo três características:

  • Dificuldade de comunicação
  • Problemas para socializar
  • Padrões fixos de comportamento, incluindo movimentos repetitivos e interesse elevadíssimo por certos assuntos ou atividades

A detecção é feita por uma avaliação comportamental em consultório. Não há exames de sangue ou imagem para essa finalidade.

Não à toa, hoje a condição é classificada com um espectro, já que sua manifestação é ampla e heterogênea. “Se você conhece um autista, você conhece apenas um autista” é uma máxima usada para representar a diversidade da condição, que se apresenta de formas múltiplas.

+Leia também: A contribuição da investigação genética no diagnóstico do autismo

Por isso, o TEA também foi dividido em graus de suporte:

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  • Nível 1: apresenta pouco ou nenhum comprometimento na linguagem funcional. Pode haver dificuldades na interação social, mas nada que exija grande suporte dos outros.
  • Nível 2: é a média funcionalidade: há um menor grau de independência e necessidade de auxílio no dia a dia, muitas vezes para desempenhar atividades cotidianas.
  • Nível 3: marcado por baixa funcionalidade. Nesses casos, existe uma dependência substancial de terceiros devido a interações sociais muito limitadas e comportamentos que interferem na qualidade de vida e no convívio.

Nos Estados Unidos, a estimativa baseada em nova pesquisa do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) revela que uma em cada 36 crianças com menos de 8 anos possui a condição. O dado não é unanimidade (por trás dele, acredita-se que há um recente relaxamento dos sinais que definem a condição), porém deixa claro que não estamos abordando uma condição rara.

Não existe medicação própria para o autismo. A base do tratamento é estimular e contornar as dificuldades e limitações de cada paciente, algo que pode envolver médico, psicólogo, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, educador físico, entre outros profissionais.

Os remédios entram como aliados para contornar comportamentos que podem ser prejudiciais para a própria pessoa e familiares, como a agressividade. E é aí que entra – ou entraria – o extrato da cannabis.

+Leia também: Cannabis medicinal: o que esperar dela?

O que já se sabe sobre maconha medicinal?

A Cannabis é uma planta nativa do Centro e do Sul da Ásia. Três espécies fazem parte dessa família, mas a Cannabis Sativa é a mais utilizada por ter uma menor proporção de tetrahidrocanabinol, o famoso THC, responsável pelos efeitos alucinógenos do uso recreativo da maconha.

Essa planta carrega muitos componentes, mas dois são mais famosos e estudados: o THC e o CBD (canabidiol).

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Ambos, e em especial o CBD, têm sido estudados para diversas patologias. “Foi um marco clínico na medicina, na neurologia infantil, a descoberta da função do CBD para controle de epilepsia”, pontua Soares.

A aplicação contra certos tipos de epilepsia é a aplicação mais referendada pela ciência. Uma revisão sistemática publicada no periódico Scientific Reports mostra que o canabidiol reduz em até 50% as crises de crianças com síndrome de Dravet, um tipo de epilepsia grave, progressiva e incapacitante que limita o desenvolvimento cognitivo e motor da criança. Em muitas situações, essas crianças não respondem à abordagem farmacológica padrão.

+Leia também: Canabidiol: pressão sobre CFM abre caminho para beneficiar pacientes

O CBD também atua com sucesso na síndrome de Lennox-Gastaut, que tem repercussões similares.

Já o THC é bastante estudado pelo potencial efeito analgésico e para conter a espasticidade da esclerose múltipla.

Por outro lado, para muitas outras alegações difundidas, as evidências são fracas ou até decepcionantes (confira mais sobre o uso medicinal dessa planta na reportagem Cannabis medicinal: o que esperar dela?).

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Hoje, no mercado, existem três tipos de produto à base de cannabis: o canabidiol isolado, o full spectrum e o broad spectrum. Ou seja, isolado, espectro completo e espectro amplo.

O full spectrum, o completo, traz tudo que há na cannabis, incluindo THC, CBD e outros canabinoides e polifenóis. O CBD isolado é exatamente isso, apenas canabidiol. E o broad spectrum, que é o amplo, configura tudo que há na cannabis, menos o THC.

Nas farmácias brasileiras, encontra-se cannabis medicinal de duas formas: o canabidiol isolado e o full spectrum. Para adquirir, é necessário uma autorização e um termo de consentimento, justamente porque faltam estudos clínicos que possam ser usados para embasar uma aprovação tradicional de comercialização pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). 

+Leia também: Cannabis medicinal no Brasil: legislação a caminho de um acesso mais amplo

Como a cannabis atua sobre o autismo?

Ainda não se sabe exatamente. E essa história começou porque, na verdade, o TEA é um condição que pode vir acompanhada de outras, como a epilepsia. Aí, após usar o CBD para tratar esse segundo problema, foram surgindo relatos de benefícios também em questões comportamentais ligadas ao autismo.

“Mães notaram melhora em relação à irritabilidade, hiperatividade, estereotipias, ao sono. Outras chegaram a falar de melhora cognitiva, ou seja, de uma maior capacidade de aprender e compreender os outros”, pontua o neuropediatra Joniel Soares.

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Segundo o biólogo e neurocientista Renato Malcher Lopes, da Universidade de Brasília (UnB), é possível que, em alguns pacientes, a explicação para as supostas melhoras no autismo seja parecida com a das formas graves de epilepsia.

Ele explica que, assim como na epilepsia, no autismo há uma falta generalizada de controle sobre o que flui entre os neurônios.

“Isso, no caso dos epilépticos, causa a convulsão. Nos autistas, o quadro não chega ao mesmo nível de espalhamento e de intensidade. Seria uma hidden seizure em inglês. Ou seja, uma convulsão escondida”, informa o pesquisador.

+Leia também: Epilepsia: o curto-circuito tem conserto

Para Malcher, que há mais de 20 anos destrincha a ação fisiológica dos canabinoides, várias funções do cérebro de pessoas autistas em níveis mais graves não estão se orquestrando de forma habitual.

Isso inclusive estaria relacionado a sintomas comuns da condição, como hipersensibilidade sensorial, dificuldade de controle emocional, hiperatividade, movimentos repetitivos, entre outros.

E, como os canabinoides ajudariam a regular a comunicação do sistema nervoso, conseguiriam melhorar certas manifestações do autimo. Mas atenção: esse mecanismo de ação é apenas uma hipótese que carece de comprovação.

Pela dificuldade de compra do extrato principalmente alguns anos atrás, muitas mães dão o óleo de cannabis artesanal para os filhos, alguns feitos por associações de pacientes. Mas é importante ressaltar que é essencial saber as quantidades certas de CBD e THC nas amostras para dar mais segurança em qualquer tratamento.

“E eu sempre digo aos pais que o uso de cannabis para autismo é um tratamento experimental. Não existe protocolo oficial ou recomendação de sociedade científica, nem garantia de segurança a longo prazo, pelo menos comprovada por estudos”, pondera Soares. “Mas também não existe hoje uma contraindicação”, complementa.

+Leia também: Cannabis medicinal é liberada nas Paralímpiadas por agência antidoping

O que dizem os estudos

Já existem pesquisas que buscam investigar a ação de canabinoides frente ao autismo. Mas elas ainda são incipientes, e deixam margem para dúvidas.

Por exemplo: numa publicação da revista Nature, analisou-se os dados de 188 pacientes com TEA tratados com extratos de cannabis entre 2015 e 2017. A maioria recebeu um óleo contendo 30% de CBD e 1,5% de THC.

Após seis meses de tratamento, 90,2% relataram alguma melhora e outros 8,6% não tiveram alteração do quadro inicial. Os principais sintomas atenuados foram: inquietação, irritabilidade, ataques de raiva, agitação, dificuldades ligadas ao sono, ansiedade, constipação e problemas na digestão.

Por outro lado, 25,2% apresentaram pelo menos um efeito colateral: o mais comum foi o aumento da inquietação. Déficits cognitivos não foram observados.

Segundo a conclusão do estudo, a cannabis parece ser uma opção bem tolerada, segura e eficaz para aliviar os sintomas associados ao TEA.

Mas essa pesquisa foi realizada sem grupo controle, entre outras limitações. Por isso, as melhoras observadas não podem ser atribuídas com certeza ao uso do extrato da cannabis – é possível que o efeito placebo ou outro fator não observado tenham contribuído para os resultados.

+Leia também: Remédio falso para autismo e outras doenças é retirado do mercado

Um dos países que mais investiga o assunto é Israel. Em uma pesquisa de lá recente feita com ratos, os cientistas notaram que seria importante não tratar o autismo apenas com CBD, mas com extrato contendo THC, pois esse composto contribuiria para uma melhora mais ampla dos comportamentos das cobaias.

O trabalho também sugeriu que a quantidade de THC necessária para produzir resultados é pequena, como as já presentes em óleos de cannabis medicinal. Só que experimentos com ratos não podem ser transpostos para seres humanos.

Malcher, juntamente aos médicos Leandro Ramires e a Patrícia Montagnere, publicaram recentemente um estudo todo feito no Brasil sobre o assunto na revista Frontiers in Psychiatry. E ele possui duas características:

  1. Todos os participantes usaram extratos produzidos aqui no Brasil por associações de pacientes
  2. O protocolo adapta o tratamento a cada indivíduo de acordo com sua resposta as diferentes formulações de extrato de cannabis disponíveis.

Dos 20 pacientes analisados que usaram o óleo por pelo menos 3 meses, 18 tiveram resultados positivos. “Observamos melhoras em quase todos os sintomas, inclusive em hiperatividade, déficit de atenção, agressividade, interação social, comunicação e até aumento na independência”, comenta o professor da UnB.

Só que esse estudo também não possui grupo controle e os profissionais sabiam que estavam aplicando essas medicações. Ou seja, há vieses que podem influenciar esses achados, como o próprio efeito placebo.

Resumindo, o uso de cannabis medicinal no contexto do autismo, principalmente para aplacar certos sintomas, merece mais investigação – e, eventualmente, pode surgir como alternativa para determinados sintomas. Mas, diante do que temos hoje, não dá para dizer que essa estratégia é melhor do que outras já disponíveis. Vale ter uma conversa franca com os profissionais de saúde e seguir acompanhando as novidades da ciência.

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