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A vez da educação positiva

Afinal, como criar filhos com afeto e respeito sem cair na ausência de regras?

Por Daniella Grinbergas (texto) | Laura Luduvig (design)
4 set 2024, 09h22
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    Criação com afeto e respeito ganha espaço entre famílias brasileiras (Ilustração: Laura Luduvig e Midjourney/Veja Saúde)

    O adulto manda, a criança obedece: durante séculos, essa máxima da sabedoria popular esteve presente nos lares, autorizando, se preciso, ameaças, castigos e até punições físicas.

    O mundo girou e, na contramão dessa abordagem, muitos pais, traumatizados com a própria criação, adotaram o estilo oposto: uma infância com liberdade total, na completa falta de regras. E assim uma terceira via ganhou espaço, questionando o modelo repressor ao mesmo tempo que fazia ponderações à permissividade. É a chamada educação positiva.

    O conceito não é exatamente novo, mas decolou nas rodas de conversa e na timeline dos pais.

    Uma de suas bases, a teoria do apego seguro, começou a ser formulada no início dos anos 1940. Outro pontapé inicial, a disciplina positiva, também surgiu na primeira metade do século 20, com o trabalho do psicólogo austríaco Alfred Adler, contemporâneo e conterrâneo de Sigmund Freud.

    A história é antiga, e o raciocínio é simples: um método de educação que prega, acima de tudo, o respeito mútuo, a empatia e o reforço positivo. “O autoritarismo e a permissividade são dois lados da mesma moeda, e, em ambos os casos, é o adulto que está no centro. Na educação positiva, propomos um universo diferente, focado na criança”, explica a pedagoga e educadora parental Maya Eigenmann, autora de obras como A Raiva Não Educa. A Calma Educa (Astral Cultural – Clique para comprar*).

    Só que isso não significa que é a garotada que vai determinar as regras do jogo. Significa que é preciso ouvir mais os pequenos e conhecer suas necessidades.

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    Impacto do afeto no desenvolvimento infantil

    A mudança de lógica se baseia na ideia, proposta por Adler e reforçada por inúmeros estudos, de que a personalidade da criança é moldada por suas experiências sociais. Portanto, quanto mais felizes e respeitosas forem essas interações, maiores as chances de um desenvolvimento pleno e saudável.

    Sem ter isso em mente, a proposta da educação positiva pode até soar radical: acabar com a hierarquia e passar a olhar a criança com o mesmo valor do adulto. “Nós temos mais maturidade emocional e neurológica, e podemos usar essa experiência para ajudar e apoiar a criança, respeitando sua integridade”, defende Priscilla Montes, educadora parental certificada pela Positive Discipline Association (PDA).

    Nessa direção, nada de castigo, violência, medo ou submissão. As crianças ganham voz ativa e podem negociar com os pais. Só que isso virou até motivo de piada e discussão nas escolas. Quem não ouviu por aí que os pequenos desaprenderam a respeitar pais e professores?

    Que estão sendo criados sem limites? Ocorre que essa é uma interpretação distorcida da teoria da educação positiva. Não se trata de jamais falar “não” ou deixar de impor normas. “A última decisão pode ser do adulto, mas a criança precisa ter lugar de fala naquele lar. Ela deve sentir que tem o mesmo valor que os mais velhos e se sentir pertencente ao grupo”, argumenta Priscilla.

    Por isso, a educadora acredita que, antes de mais nada, é necessário que o cuidador se desconstrua e entenda que a lógica da submissão foi superada. E isso é difícil justamente porque desafia a maneira como a grande maioria das pessoas que nasceram até os anos 2000 foi criada. Mas, considerando o impacto negativo de brigas e punições no desenvolvimento e na saúde no longo prazo, vale repensar.

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    + Leia tambémÉ preciso criar anticorpos emocionais para lidar com traumas

    “É possível estabelecer limites, dizer ‘não’ e explicar as razões de determinadas regras de forma respeitosa e amorosa”, afirma Wagner de Lara Machado, coordenador do curso de especialização em psicologia positiva da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

    Nessa jornada, o responsável é aquele que ajudará o pequeno a processar emoções e a lidar com situações diante das quais não teria maturidade suficiente para encarar sozinho.

    “O adulto vai auxiliá-lo a entrar em contato com a frustração, o controle de impulsos, a análise dos riscos e o autocuidado”, diz Machado. A ideia não é blindar os filhos de circunstâncias e sentimentos que fazem parte da vida. Mas acolhê-lo com orientações úteis para o hoje e o amanhã.

    É bonito na teoria — e pode ser na prática!

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    A base de tudo é o diálogo, sempre trazendo explicações de acordo com a bagagem que o pequeno já tem e com o entendimento de cada faixa etária. “A decisão final é minha porque tenho idade, maturidade e experiência para saber o que é certo, mas nem por isso deixo de ouvir a criança e explicar os motivos dos meus ‘nãos’”, expõe Priscilla.

    Olhando lá para a frente, essa abertura à conversa ajudará a formar pessoas mais sensatas, com pensamento crítico, que sabem se comunicar sem violência e navegar por situações difíceis. “As crianças nascem colaborativas, amorosas e generosas, mas nós podamos tudo isso com ações punitivas e violentas”, acredita a educadora.

    De fato, a infância é uma fase potente, aquela em que mais se formam conexões neurais e o cérebro está mais receptivo ao aprendizado. Logo, precisamos aproveitar a janela de oportunidades para semear nos pequenos o que há de melhor. “Não se deve ter medo de ser amoroso e firme, porque essas posturas são complementares”, aconselha Machado.

    Princípios da educação positiva

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    Clique na imagem para ampliar (Ilustração: Laura Luduvig/Veja Saúde)

    Regras na mesa

    Sim, elas existem e devem ser entendidas e respeitadas — não apenas obedecidas. “Nós usamos o cinto de segurança no carro porque é crucial para preservar a vida e não só para evitar as multas”, exemplifica a pediatra Priscila Xavier, especialista na prevenção de traumas. Ou seja, quando a molecada entende os porquês, a tendência é aprender a respeitar.

    E sabe a máxima de que o combinado não sai caro? Ela é fundamental no dia a dia, e as negociações entre pais e filhos são imprescindíveis para achar o meio-termo. “Nós temos medo de dialogar com a criança porque dessa forma nos colocamos no mesmo lugar que ela. Não fomos criados para estar nessa posição, mas isso precisa mudar”, defende Priscilla Montes.

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    Por exemplo: se é hora do banho e a criança está no meio de uma brincadeira, por que não avisá-la um pouco antes para que vá finalizando sua atividade, ou mesmo deixar que ela se divirta uns minutinhos a mais?

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    E quando não pode? Como lidar com situações desafiadoras?

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    Clique na imagem para ampliar (Laura Luduvig/Midjourney/Veja Saúde)

    Se a situação estiver além do entendimento do pequeno, cabe ao adulto se antecipar e oferecer recursos para que ele se comporte de acordo com o esperado para o local ou a ocasião.

    Outro exemplo: em um ambiente em que não é permitido correr ou gritar, mais do que dizer que “não pode”, é necessário dar alternativas, levar livros ou alguma outra distração, e programar uma atividade em seguida para que ele possa gastar energia. “O que não pode é exigir que a criança entenda o universo do adulto. É o contrário que tem que acontecer: o adulto precisa acolher as necessidades dela”, ressalta Maya.

    No início da vida, não há sequer a maturidade neurológica para compreender situações como essa. Mas é claro que a flexibilidade não vale para tudo: se a segurança estiver em jogo, algumas coisas serão inegociáveis. Para atravessar a rua de mãos dadas ou tomar um medicamento, não há alternativas.

    Mesmo assim, os sentimentos da criança em relação a essas necessidades devem ser ouvidos. “Numa relação pautada em conexão e colaboração, a criança se sente à vontade para confiar nas regras. Então, é mais tranquilo lidar com ela na educação positiva do que na educação tradicional autoritária ou permissiva”, afirma a pedagoga.

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    + Leia tambémComo construir uma relação positiva com as crianças?

    Estudar para educar

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    Clique na imagem para ampliar (Laura Luduvig/Midjourney/Veja Saúde)

    Está cada vez mais evidente que educar não é algo instintivo. Ninguém nasce sabendo criar um filho. Como tudo na vida, é preciso se munir de informação para escolher os melhores caminhos. “Romper crenças prejudiciais e investir na própria formação parental é fundamental para minimizar danos e promover um desenvolvimento saudável”, salienta a pediatra Priscila Xavier.

    O mesmo vale para as escolas, que já enxergam a importância do tema, mas carecem de profissionais aptos a colocá-lo em prática. “Saúde emocional, neurociência e educação positiva são pautas que deveriam estar na grade de formação das faculdades de pedagogia. Precisamos capacitar os educadores para mudar esse cenário”, avalia Priscilla Montes.

    O ponto principal, e mais desafiador, é que a transformação da educação exige tempo e participação de todos os envolvidos.

    A boa notícia é que a transformação já começou. “Atualmente, temos inúmeros artigos, entrevistas e publicações sobre educação positiva e uma base muito grande de pessoas interessadas. Há uma presença maior do assunto na internet e, aos poucos, também vemos que ele se torna mais presente na sociedade, inclusive nas escolas”, avalia a pedagoga Maya Eigenmann.

    Nas instituições de ensino, o raciocínio contrapõe o modelo tradicional, que preza a disciplina, com foco total no aprendizado “conteudista”. E bebe da fonte da psicologia positiva, campo de estudos que visa entender como desenvolver emoções e características que promovam o desenvolvimento pessoal.

    Novamente, é uma mudança de paradigma e tanto, que coloca no currículo escolar questões como educação emocional, comunicação e empatia. Bem como valores que serão levados para a vida toda.

    De acordo com um estudo recente do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), quase 400 milhões de crianças menores de 5 anos no mundo sofrem algum tipo de violência dentro de casa. E isso é visto como parte da criação. Segundo o mesmo levantamento, um em cada quatro cuidadores acredita que o castigo físico é necessário para educar.

    Não à toa, ao longo da história o Brasil criou várias leis para resguardar os mais novos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), a Lei da Palmada (2014), o Marco Legal da Primeira Infância (2016), a Lei da Escuta Protegida (2017), a Lei Henry Borel (2021) e a mais recente, sancionada em março deste ano, que define a Parentalidade Positiva.

    Mas isso não é suficiente para combater abusos. Falta conscientizar a comunidade e incentivar as pessoas a romper com crenças nocivas, o que passa pela própria formação dos pais e responsáveis.

    É fato: a educação punitiva na verdade não educa. Ela provoca respostas advindas do medo, e não da reflexão. “A neurociência mostra que o aprendizado real ocorre em um estado de segurança. Quando as crianças se sentem ameaçadas, o cérebro não absorve bem as informações”, explica Priscila Xavier.

    Daí a importância de um ambiente de escuta e respeito. “O modelo autoritário tradicional mina o mais importante para a criança: uma relação de confiança com seu adulto cuidador”, esclarece Maya. E as repetidas frases que ouvimos para justificar as punições, como “Apanhei e não morri” ou “Tempos difíceis geram homens fortes”?

    Para Priscila, elas revelam uma falta de compreensão sobre o impacto profundo dessa abordagem ao longo da vida. “Estudos mostram que traumas na infância podem levar a problemas como ansiedade, depressão e doenças físicas”, diz a pediatra.

    Sendo assim, é importante quebrar o ciclo da violência. E o reconhecimento é a chave para implementar estratégias que promovam a saúde integral da garotada.

    Os benefícios não se limitam aos pequenos. A educação positiva tem potencial para gerar uma família e uma sociedade mais empáticas. “Ela constrói uma base para termos adultos mais justos, compreensivos e colaborativos”, afirma a expert em traumas na infância.  Aplicá-la exige empenho, claro. E começa pela mudança no comportamento dos mais velhos. “No fundo, não estamos falando sobre como melhorar a criança, mas como melhorar o adulto”, pontua Maya.

    Não é intuitivo, tampouco há um manual a ser seguido. A estrada é extensa e cada passo precisa ser dado com consciência. Mas o caminho das pedras tem como destino a construção de uma conexão genuína, saudável e duradoura entre pais e filhos. “Livros podem oferecer ótimos insights, mas a mudança real vem da prática diária e da escolha de olhar para dentro”, afirma Priscila.

    Quando a dúvida bater, o carinho e o respeito devem sempre ser os guias das famílias no percurso. “Inúmeros estudos mostram que a falta de afeto na infância somatiza essa lacuna fisicamente. Ele é tão necessário quanto comer e beber”, destaca Maya.

    Por fim, para quem já está no meio do caminho, mas deseja recalcular a rota, os especialistas são unânimes em garantir que nunca é tarde para mudar. Mesmo quem vem aplicando a educação punitiva ou permissiva em casa consegue uma virada de chave. Sempre há tempo de repensar, reconstruir a relação, ser mais compreensivo e oferecer acolhimento e segurança aos pequenos.

    E isso não é sinônimo de ingratidão pelo passado. “Quando decidimos adotar um modelo diferente do que vivemos, não estamos criticando quem nos criou. Estamos oferecendo o melhor que podemos com o que sabemos agora”, reflete Priscila. Se quem planta colhe, que possamos regar, então, as sementes do afeto, do respeito e do diálogo. Para ver florescer uma nova geração mais saudável e feliz.

    + Leia tambémTempo de qualidade com os filhos ajuda no desenvolvimento infantil

    Não tem mais que obedecer?

    A educação tradicional tem como fim uma criança obediente, diferentemente da educação positiva, que visa formar pessoas pensantes e que desafiem os limites que são impostos.

    A grande questão é que focar na obediência tem lacunas importantes. Primeiro, não ensina a pensar por contra própria. Segundo, a molecada entende que expressar suas opiniões ou discordar pode trazer prejuízos, o que tende a afetar a capacidade de se afirmar e defender sua visão depois.

    “Além disso, educar apenas para obedecer pode tornar as crianças mais vulneráveis a abusos”, alerta a pediatra Priscila Xavier. Ora, se um adulto manda não contar algo, ela tem que obedecer os mais velhos, certo?

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