Neurocirurgião e mais novo imortal da ABL vasculha os mistérios do cérebro
Livro do neurocirurgião carioca Paulo Niemeyer Filho, recém-eleito para a Academia Brasileira de Letras, também vai virar série documental
Prestes a viajar com a família, Paulo Niemeyer Filho já estava no carro quando, numa manhã de sábado, o telefone tocou. Do outro lado da linha, alguém avisava o neurocirurgião carioca de um acidente envolvendo um rapaz que fazia pesca submarina no litoral do Rio.
Ao voltar à tona, o mergulhador não viu o fundo da lancha, bateu com a cabeça e fraturou a coluna. Tetraplégico, ficou à deriva por quase 14 horas. Depois de quase ter sido atropelado por um transatlântico, foi salvo por pescadores em Niterói, a 15 quilômetros do local do acidente.
Levado às pressas para o hospital, pediu para avisarem a mulher e chamarem o médico. Quando os dois se encontraram, a única coisa que o rapaz conseguiu dizer foi: “Não quero morrer!”.
“Eu o operei e, hoje, ele está andando”, recorda o doutor. “Por tudo que passou nessas 14 horas em que boiou e, principalmente, pelo final feliz, é um caso surpreendente”, avalia.
O episódio do rapaz que perdeu os movimentos do pescoço para baixo e só não morreu afogado por causa da roupa de mergulho que o manteve boiando é um dos muitos contados pelo neurocirurgião em No Labirinto do Cérebro (Objetiva).
Aos 69 anos, Paulo Niemeyer Filho não faz a menor ideia de quantas cirurgias realizou. Nem de quantas horas passou dentro de um centro cirúrgico. Só sabe que, hoje em dia, as cirurgias raramente duram um dia inteiro.
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“O que torna a cirurgia complicada é, muitas vezes, a preocupação de o doente sair dela pior do que entrou”, observa. Ao longo da carreira, o médico operou pacientes famosos como o músico Herbert Vianna, em 2001, a atriz Malu Mader, em 2005, e a jornalista Glória Maria, em 2019.
“Foi o Dr. Paulo quem fez a cirurgia que salvou minha vida”, postou a apresentadora da TV Globo em seu perfil no Instagram. “A cirurgia de seis horas transformou minha vida”.
Em No Labirinto do Cérebro, o especialista relata alguns dos casos mais curiosos que atendeu. Como o da paciente que ficou tão abalada ao ser submetida à raspagem do couro cabeludo que, ao se ver careca, seu aneurisma rompeu e ela entrou em coma.
“Depois disso, passamos a cortar o cabelo com o paciente já anestesiado e, posteriormente, abandonamos por completo o corte”, relata.
Ou da jovem de 30 anos que se queixava de dores lancinantes na perna esquerda. Detalhe: ela não tinha a perna esquerda – precisou amputá-la, três anos antes, por causa de um acidente. “As dores fantasmas são de difícil solução”, admite.
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A produtora e roteirista Sônia Rodrigues gostou tanto do que leu que tratou logo de comprar os direitos de No Labirinto do Cérebro. A ideia da filha do dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980) é transformar as histórias em uma série documental de seis episódios, com previsão de estreia para abril de 2022.
“Li o livro e fiquei impactada”, revela. “Não só com as histórias reais, como a do general que mandou construir uma piscina em casa sem saber nadar, mas também com a luta dos médicos para salvar os cérebros de seus pacientes. Tudo no livro é impressionante”.
Fã de Plantão Médico, House e Sob Pressão, entre outras produções do gênero, Sônia não descarta a hipótese de fazer também uma série médica baseada na obra. “Está no radar”, faz mistério.
A ideia de escrever No Labirinto do Cérebro, conta Paulo Niemeyer Filho na apresentação do livro, partiu de Luiz Schwarcz. O fundador e editor do grupo Companhia das Letras gostava de ouvir suas histórias e, um dia, sugeriu que as reunisse em livro.
Um dos episódios se passa na fila da ponte-aérea. Em pleno Aeroporto Santos Dumont, um homem à frente do médico apresentava um movimento involuntário. A cada novo surto, fechava o olho e repuxava o pescoço para o lado. Na mesma hora, Niemeyer chegou a um diagnóstico: espasmo hemifacial.
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Em seguida, explicou ao desconhecido que o problema dele tinha solução cirúrgica. “Obrigado, vou procurar o dr. Paulo Niemeyer”, respondeu o sujeito, sem saber que conversava com o próprio.
“Não tenho a exposição que o Drauzio Varella tem. Ele é um ótimo médico e um grande comunicador. Vez ou outra, sou reconhecido por algum paciente, mas não passa disso”, minimiza.
Em outra ocasião, ainda muito jovem, convidou o pai, o neurocirurgião Paulo Niemeyer (1914-2004), para assistir a uma de suas cirurgias. O paciente era um respeitado neurologista que sofria de nevralgia do trigêmeo, queixa neurológica que se assemelha a “um choque elétrico no rosto”.
“É considerada a pior das dores”, descreve. A certa altura, o neurocirurgião teve uma dúvida qualquer e perguntou: “Pai, o que eu faço?”. O veterano, sem contrair um músculo do rosto, respondeu: “Não sei. O paciente é seu!”.
“A vida inteira vi meu pai atendendo pacientes do SUS e comandando uma enfermaria da Santa Casa. A preocupação social foi a lição mais importante que aprendi com ele. Por essa razão, nunca deixei de atender aos menos favorecidos”, afirma o neurocirurgião.
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Outra casa
A partir de agora, Paulo Niemeyer Filho terá de conciliar as cirurgias no Instituto Estadual do Cérebro (IEC), onde é diretor médico, com o chá das quintas-feiras na Academia Brasileira de Letras (ABL).
No último dia 18 de novembro, foi eleito, com 25 de 34 votos, o mais novo ocupante da cadeira 12, que pertenceu ao professor e crítico literário Alfredo Bosi (1936-2021).
Paulo Niemeyer é o 25º médico a ingressar na instituição fundada por Machado de Assis (1839-1908) em 20 de julho de 1897. Por lá passaram nomes como o epidemiologista Osvaldo Cruz (1872-1917), o sanitarista Moacyr Scliar (1937-2011) e o cirurgião plástico Ivo Pitanguy (1923-2016). “Guimarães Rosa é hors concours”, opina. “É um escritor inigualável e um homem de grande erudição e criatividade. Uma referência”.
Em No Labirinto do Cérebro, o mais novo imortal da ABL pede ajuda a pesos-pesados da literatura universal para explicar alguns conceitos neurológicos.
Assim, recorre ao conto O Homem de Negócios (1840), do americano Edgar Allan Poe (1809-1849), para falar sobre a síndrome do lobo frontal. O romance Em Busca do Tempo Perdido (1913-1927), do francês Marcel Proust (1871-1922), serve de exemplo para a memória voluntária. Já Os Demônios (1872), do russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), ajuda a descrever crises epilépticas.
Em outros capítulos, Paulo Niemeyer Filho cita filmes como O Estranho no Ninho (1975), de Milos Forman; Tempo de Despertar (1990), de Penny Marshall; e Perfume de Mulher (1992), de Martin Brest, para discorrer sobre lobotomia, Parkinson e cegueira.
Por fim, diz que a pandemia lhe fez lembrar o clássico Os Pássaros (1963), de Alfred Hitchcock, quando aves invadiram o balneário de Bodega Bay, na Califórnia, e obrigaram seus habitantes a se trancarem em casa. “Parecia que estávamos vivendo um filme de terror”, compara. Filme de terror esse que, nunca é demais lembrar, ainda não acabou.