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Tá na internet, tá na TV, tá nos livros... tá no nosso dia a dia. O jornalista André Bernardo mostra como fenômenos culturais e sociais mexem com a saúde — e vice-versa.
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Holocausto brasileiro: retrato de horrores de um hospício vira série de TV

Seriado sobre o Hospital Colônia de Barbacena, que já foi o maior hospício do Brasil, é baseado em livro da jornalista Daniela Arbex

Por André Bernardo
9 nov 2021, 19h34
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  • O bombeiro João Bosco Siqueira, de 55 anos, cresceu acreditando que tinha sido abandonado ainda bebê. Só descobriu a verdade em 2011, quando os colegas de corporação localizaram sua mãe. Órfã desde criança, Geralda tinha 15 anos ao dar à luz no Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais. Era empregada doméstica desde os 11 de um advogado de Virginópolis, a 270 quilômetros de Belo Horizonte.

    “Foi mandada para o Colônia, grávida de três meses, pelo patrão que a estuprou”, relata a jornalista Daniela Arbex. As mulheres que engravidavam lá não podiam criar seus filhos. As crianças eram entregues para adoção ou, no caso do filho de Geralda, despachadas para orfanatos. Geralda e João Bosco só se reencontraram 40 anos depois.

    Essa é uma das muitas histórias contadas por Daniela em Holocausto Brasileiro (Intrínseca), livro-reportagem que denuncia a morte de 60 mil internos e o sofrimento dos sobreviventes daquele que foi o maior hospício do Brasil. Publicada em 2013, a obra vendeu mais de 300 mil exemplares, foi premiada com um Jabuti (o mais importante prêmio literário do país), virou documentário da HBO e ganhou adaptação para a TV com a série Colônia, da Globoplay.

    Em 2022, o livro chega às telas do cinema. “Toda e qualquer família tem ou conhece alguém com algum transtorno de saúde mental. Isso torna a temática do livro universal”, acredita a autora. Muito antes do lançamento de Holocausto Brasileiro, o livro Nos Porões da Loucura (1982), do jornalista Hiram Firmino, e o documentário Em Nome da Razão (1979), do cineasta Helvécio Ratton, já haviam denunciado os horrores do Hospital Colônia.

    As barbaridades começam pelos critérios de quem deveria ser internado ali. Afinal, qual era o diagnóstico de dona Geralda e por que ela foi parar numa instituição psiquiátrica? “Cerca de 70% dos internos não tinham diagnóstico de doença mental”, conta André Ristum, diretor e roteirista de Colônia. Eram, em sua maioria, alcoólatras, prostitutas, homossexuais, epiléticos, sifilíticos… Ou, simplesmente, mães solteiras.

    É o caso de Elisa, a protagonista da série. Filha de fazendeiros, a personagem vivida por Fernanda Marques é internada no hospício pelos pais só porque engravidou do namorado. “É uma história repleta de injustiça e desumanidade”, diz o cineasta, que convidou os psiquiatras Eliezio Aguiar e Fernando Torrecillas para ajudar na construção dos roteiros e na preparação do elenco. “As histórias que mais me chocaram foram as de jovens grávidas e de seus filhos indesejados que foram mandados para lá por serem um problema para a sociedade da época”.

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    + LEIA TAMBÉM: Esquizofrenia: estigma também precisa de tratamento

    Antes do início das gravações, Ristum visitou o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena e ficou surpreso ao descobrir que, ainda hoje, residem ali pacientes do antigo Hospital Colônia. “Eles tiveram suas vidas roubadas e não puderam ser reintegrados à sociedade. Ou por não saberem de onde tinham vindo ou por não conseguirem se readaptar a uma vida fora dali”, lamenta o diretor.

    Com a aprovação da lei de atenção ao portador de transtorno mental no Brasil, em 2001, um novo modelo de assistência foi adotado no país. Os pacientes com diagnóstico psiquiátrico passaram a receber tratamento humanizado em residências terapêuticas. Exibida pelo Canal Brasil e disponível no Globoplay, Colônia fez tanto sucesso que Ristum já desenvolve uma segunda temporada para a TV e finaliza um longa para o cinema a partir dos dez episódios da primeira temporada.

    A cena da chegada de Elisa ao Colônia, transportada no vagão de um trem de carga, impactou a psiquiatra Ana Paula Guljor. “Considerada louca pela sociedade, a personagem se senta para conversar com o médico, mas ele não ouve absolutamente nada do que ela diz. Sua palavra não é ouvida porque não tem importância. O que importa ali é o estigma de incapacidade ou de periculosidade que lhe impuseram”, afirma a vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental, que conheceu Daniela no Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps) da Fiocruz.

    O “hospício de Barbacena”, a propósito, é citado pelo escritor mineiro Guimarães Rosa (1908-1967) no conto Sorôco, Sua Mãe, Sua Filha, do livro Primeiras Estórias (1962).

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    A jornalista Daniela Arbex, autora de
    A jornalista Daniela Arbex, autora de “Holocausto Brasileiro” (Foto: Intrínseca/Divulgação)

    “Estive hoje num campo de concentração nazista”

    A ideia de escrever Holocausto Brasileiro, conta Daniela Arbex no posfácio do livro-reportagem, nasceu em 2009 quando ela viu, pela primeira vez, as fotografias tiradas em 1961 por Luiz Alfredo para a revista O Cruzeiro. Para fazer os registros, o fotógrafo passou seis horas no manicômio.

    “Fiquei profundamente impactada”, confessa a jornalista. “Nunca tinha me deparado com nada parecido, a não ser as imagens dos judeus presos e assassinados na Alemanha Nazista”. O impacto foi tamanho que, em 2011, a então repórter do jornal Tribuna de Minas, em Juiz de Fora, resolveu buscar alguns dos possíveis sobreviventes. Queria contar para o maior número de pessoas o que se passou no Brasil entre 1903, data da fundação do Hospital Colônia de Barbacena, e 1980, quando a instituição começou a ser reformulada.

    + LEIA TAMBÉM: A evolução dos tratamentos psiquiátricos no Brasil

    Comparar o Colônia a um campo de concentração, aliás, é um recurso recorrente. O primeiro a lançar mão dele foi o psiquiatra italiano Franco Basaglia (1924-1980), pioneiro da luta pelo fim dos manicômios. Em 1979, ele esteve no Brasil e visitou o Colônia. Não gostou nada do que viu. “Estive hoje num campo de concentração nazista”, declarou, numa coletiva de imprensa. “Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia dessas”.

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    Com as fotografias em mãos, Daniela partiu para Barbacena à procura de moradores que pudessem dar alguma pista sobre o paradeiro dos ex-internados. “Até começar a bater nas portas certas, fui a dezenas de endereços errados”, descreve a jornalista que, depois de dois anos de investigação, conseguiu localizar 160 remanescentes daquele período.

    O primeiro foi José Machado, o Machadinho, “um homem negro e pobre acusado injustamente de colocar veneno na bebida de alguém”, descreve a jornalista. Por essa razão, passou mais de 50 anos esquecido naquele lugar. Ao chegar em vagões superlotados, os internos tinham suas roupas arrancadas e a cabeça raspada. Alguns ganhavam apelidos. Outros, nem isso.

    Em suas idas e vindas a Barbacena, Daniela fez descobertas estarrecedoras: os internos comiam ratos, bebiam água de esgoto e dormiam sobre capim. “Não havia leito disponível para todo mundo”, explica Ana Paula. Só na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, havia 2,8 mil leitos para 4,9 mil pacientes, segundo o livro Psiquiatria Social: Problemas Brasileiros de Saúde Mental (Atheneu), do psiquiatra Luís da Rocha Cerqueira (1911-1984).

    Nas noites frias, os internos se amontoavam uns sobre os outros para se manter aquecidos. Os que ficavam por debaixo da pilha de corpos nus costumavam morrer sufocados. Vítimas de maus-tratos, pelo menos 60 mil pessoas morreram no Hospital Colônia de Barbacena. Ou, em alguns casos, foram mortos.

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    “Os pacientes do Colônia morriam de frio, de fome, de doença. Morriam também de choque”, escreveu a jornalista e escritora Eliane Brum, em Os Loucos Somos Nós, o prefácio do livro de Daniela. “Em alguns dias, os eletrochoques eram tantos e tão fortes, que a sobrecarga derrubava a rede do município.”

    Seus cadáveres, então, eram vendidos para faculdades de medicina. Foram 1 853 corpos, descritos como “peças” nos prontuários da instituição e comercializados entre 1969 e 1980. O restante era enterrado em valas comuns no cemitério, hoje desativado, anexo ao manicômio. “Infelizmente, o Hospital Colônia não era exceção. Era regra”, afirma Ana Paula. “A política pública vigente na época era voltada exclusivamente para a internação hospitalar”, prossegue a médica.

    História inacabada

    Com a publicação do livro, Daniela passou a receber um sem-número de e-mails. Muitos deles eram de profissionais da área, como psicólogos e psiquiatras, elogiando sua iniciativa. Diziam que, após terem lido o livro, se tornaram profissionais ainda melhores. Não bastasse, a obra ainda inspirou dezenas de dissertações, teses e artigos de graduação, mestrado e doutorado. “Acredito que ele trouxe fôlego novo à luta antimanicomial no Brasil”, avalia a jornalista.

    Outras tantas mensagens eram de pessoas que, ao folhear as páginas de Holocausto Brasileiro, reconheceram parentes naquele inferno. Caso do aposentado José Carlos Almeida, que identificou a própria mãe, Leonor Correia de Almeida, em uma foto do livro. “Ele não para de chorar”, contou o filho, o funcionário público André Almeida, o remetente do e-mail. Mais doloroso do que encontrar o nome da mãe em um livro de registro de julho de 1956 foi descobrir que quem autorizou sua internação foi o próprio marido, o pai de José Carlos.

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    A cena, de cortar o coração, está no documentário da HBO. “O aposentado chorou feito a criança que nunca pôde ser. Sua infância havia sido roubada pelo pai e pelo Colônia. Toda a equipe no set chorou junto”, conta Daniela.

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