Ter o coração arrancado do peito sem anestesia. É assim que a advogada Guta Alencar descreve a dor que sentiu ao perder Felipe, o mais velho de seus três filhos, no dia 14 de julho de 2016.
O rapaz, então com 16 anos, tirou a própria vida depois que a namorada, cinco anos mais velha, terminou o relacionamento. Cearense de Juazeiro do Norte, a 491 quilômetros de Fortaleza (CE), Guta faz questão de destacar que Felipe não sofria de depressão.
Era um jovem alegre, cheio de amigos, que cursava o segundo ano do ensino médio, frequentava a igreja e tocava violino.
No dia 28 de junho de 2019, o que parecia impossível aconteceu: Davi, irmão de Felipe, também cometeu suicídio. Segundo Guta, o rapaz, de 18 anos, não aguentou de saudades do irmão. Para superar a perda, tentou de tudo: mudou de cidade, arranjou uma namorada, planejava estudar psicologia… Nada adiantou.
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Pela segunda vez, o peito de Guta foi aberto e ela teve um pedaço de seu coração arrancado. Hoje, o único pedaço que sobrou pertence à Eva, sua caçula, de nove anos…
Ela, que hoje é estudante do último ano de psicologia, é uma das vozes presentes no documentário Para os que Ficam, que estreia nesta segunda, 18, no GNT.
“Recordar a morte dos meus filhos é sempre doloroso”, admite Guta. “Mas participar do projeto deu a oportunidade de ressignificar a minha dor”, explica ela, que hoje é estudante do último ano de psicologia.
“O propósito de apoiar os sobreviventes, de dar voz a esta causa, trouxe alento ao meu coração. A mensagem que tento levar a todos os sobreviventes é de esperança: devemos honrar a memória de quem partiu, mas, também, valorizar a presença de quem ficou. Não podemos desistir. Nunca!”.
“Compartilhamos a mesma dor”
A ideia do documentário surgiu em 2020, depois de uma entrevista por telefone entre a jornalista Márcia Disitzer e a cineasta Susanna Lira. A primeira propôs um doc sobre as famílias de suicidas, e a segunda topou na hora.
O documentário Para os que Ficam é uma continuação do artigo Setembro Amarelo: Jornalista Conta como Superou o Suicídio dos Pais, que Márcia escreveu para o jornal O Globo de 8 de setembro de 2019.
Seu pai, engenheiro, morreu quando ela tinha 12 anos e a mãe, dona de uma loja de roupas, quando Márcia tinha 23. À época, o patriarca sofria de psicose maníaco-depressiva, distúrbio psiquiátrico que, nos dias de hoje, equivale ao transtorno bipolar.
“O que levou o meu pai a procurar a morte foi o fato de a minha mãe desejar a separação”, relata Márcia, no artigo de 2019.
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No documentário, Márcia entrevista, além da advogada Guta Alencar, pessoas que perderam um filho, o pai, o marido e o irmão.
“Acredito que o fato de eu ter vivido o mesmo drama [dos entrevistados] criou uma espécie de cumplicidade entre nós e a sensação de não estarmos sozinhos. Compartilhamos a mesma dor”, explica Márcia.
Para prestar consultoria e gravar um depoimento, Márcia e Susanna convidaram a psicóloga Karina Fukumitsu. Ela é autora de diversos livros sobre o tema, como Sobreviventes Enlutados Por Suicídio: Cuidados e Intervenções e Revés de Um Parto: Luto Materno*, ambos da Summus.
De tanto socorrer a mãe, Karina Fukumitsu acabou se transformando em uma expert em suicídio.
Ela perdeu a conta das vezes em que, ao lado da irmã, precisou chamar uma ambulância e levar a mãe ao pronto-socorro mais perto de casa.
Só de internações em Unidades de Terapia Intensiva (UTI), foram quase 20. Yooko, a mãe de Karina, morreu em 2013, vítima de infarto.
“O suicídio é uma solução permanente para um problema temporário”, afirma a suicidologista. “Muitos dos que ficam sentem raiva, culpa, alívio… Sim, alívio! Não pela morte de quem partiu, mas pelo estresse que acabou…”, diz.
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Como falar de suicídio
Sob a consultoria de Karina, Márcia e Susanna tomaram alguns cuidados na hora de roteirizar o documentário.
Por exemplo, elas não mencionaram a técnica usada pelos autores para tirar a própria vida, não divulgaram cartas de despedidas (mesmo com a autorização das famílias) ou apontaram culpados pelos atos autodestrutivos.
“Exibir um documentário sobre suicídio na tevê brasileira é uma quebra de tabu”, orgulha-se Susanna Lira. “O silêncio nunca foi solução para nada. Precisamos falar sobre prevenção e posvenção de um mal que atinge cada vez mais as famílias brasileiras”.
Uma palavra que parece resumir os cinco depoimentos é ressignificação. Pelo menos dois personagens de Para os que Ficam procuraram dar um novo significado às suas vidas.
Guta, a mãe de Felipe e Davi, começou a prestar apoio a outras mães enlutadas, dentro do projeto SobreViver, e Roberto, o pai da Jéssica, se tornou voluntário do Centro de Valorização da Vida (CVV), que presta atendimento gratuito pelo número 188.
“Minha filha se matou e eu estava brigado com ela. Demorei a me perdoar”, admite o jornalista. “Ajudando os outros, eu consigo me ajudar”.
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