A queda de qualidade da saúde mental entre as gerações mais jovens, apontada no Relatório Mundial sobre o Estado de Saúde Mental deste ano, pode ser interpretada como um indício dos efeitos da entrada massiva da tecnologia digital em nossas vidas.
Segundo o documento, esse declínio tem início por volta do ano de 2010, época em que os smartphones eram popularizados e as redes sociais iniciavam um crescimento vertiginoso.
Ainda que seja muito complicado – e talvez controverso – produzir uma comprovação científica que evidencie a correlação entre a popularização das redes sociais e o aumento do sofrimento psíquico, as observações clínicas que apontam nesse sentido são abundantes e permitem que essa correlação seja presumida.
No divã, são cada vez mais frequentes as queixas em relação à autoimagem, às dificuldades de socialização, ou direcionadas à infinita impotência das idealizações (de corpo, de consumo, de estilo de vida…) vendidas nas redes sociais, frente aos acachapantes impactos de uma realidade cada vez mais dura e precária para muita gente.
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E não para por aí. Além de sofrimentos como esses, é possível observar outro efeito grave, sutil e profundamente nocivo: o esfacelamento do domínio da linguagem.
Enquanto as redes sociais se especializam na comunicação imagética, através do compartilhamento massivo de fotos e vídeos – cada vez mais curtos, diga-se de passagem –, é possível observar o aumento da dificuldade de expressão verbal e nomeação dos fenômenos do nosso mundo interno, sobretudo entre jovens.
A capacidade de nomear o que acontece em nossa vida emocional é uma habilidade na busca por sentido naquilo que acontece em nossa vida.
Com o empobrecimento da linguagem e da nossa capacidade de nomeação do que se passa ao nosso redor e em nosso mundo interno, perdemos ferramentas poderosas que nos auxiliam no árduo trabalho de compreensão da realidade, assim como de elaboração e ressignificação dos nossos afetos e sofrimentos.
Matrix, o clássico do cinema lançado no fim da década de 1990, retrata um universo em que não éramos nós, seres humanos, que utilizávamos as máquinas para facilitar a nossa vida, mas o contrário, eram elas que faziam de nós objetos de uso para o desenvolvimento de um mundo onde apenas elas prosperavam.
A trama propõe um domínio das máquinas e o aprisionamento das nossas mentes em um simulacro da realidade. Hoje, com a popularização das redes sociais e o surgimento de uma nova geração de inteligência artificial, começam a pulular os temores de que as fronteiras das nossas mentes estariam realmente em risco.
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Entre a realidade e a ficção
Talvez reine um medo que a ficção científica dos filmes e livros tenha plantado em nosso imaginário. Ou talvez o avanço desses dispositivos e sistemas tenha evidenciado um antigo alerta freudiano: o de que o entendimento do ser humano está sempre atrasado, acontece sempre a posteriori.
Seguindo tal raciocínio, o esquecimento do alerta de Freud pode nos ter levado a negligenciar o devido cuidado com os rumos que damos no uso e à aplicação das novas tecnologias.
Será que haveria a mesma virulência das fake news sem as redes sociais como ocorre hoje? Será que haveria tanto fomento aos ataques às escolas se os veículos dos discursos de ódio fossem chamados à responsabilização? Será que as vozes do nazifascismo alcançariam tantos ecos nos empoeirados porões das mentes miúdas dos ressentidos sem a imoralidade dos grupos de mensagens por aplicativo?
Precisamos assumir o protagonismo no debate sobre como queremos que as redes sociais e as inteligências artificiais sejam construídas. Precisamos assumir que criamos um problema quando permitimos que as empresas por trás das redes sociais operem da forma que é exclusivamente melhor para elas.
Não podemos permitir que o debate sobre o desenvolvimento das tecnologias desconsidere os impactos sobre as novas subjetividades, sobretudo quando já temos o entendimento de que, até aqui, o mundo digital tem contribuído ativamente no surgimento de uma nova humanidade, mais vulnerável e psicologicamente mais sofrida.
Não precisamos seguir nesse rumo. Ao contrário, podemos deixar de lado o terror da Matrix e utilizar uma outra metáfora para pensar sobre o assunto. Uma metáfora onde a tecnologia é bem-vinda, e sempre será: a dos líquens.
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Como esses organismos compostos formados de algas e bactérias, a humanidade e as máquinas já são duas espécies distintas que se juntaram e se adaptaram para sobreviver.
É importante percebermos que as máquinas já utilizam, há tempos, os seres humanos para a sua evolução. Não que estejam vivas, ou que tenham se tornado conscientes do processo. Longe disso. Nós é que estamos inconscientes demais.
E, quase que sem nos darmos conta, já estamos servindo de apoio para o desenvolvimento das máquinas e algoritmos. Eles evoluem nas nossas costas muito mais por tudo o que tem sido negligenciado, por tudo aquilo que fica no campo do não dito, que fica inconsciente em nossa sanha de progresso a todo custo.
Mas não temos motivos para crer que os robôs nos substituirão em uma disputa pela dominação global. Há uma mutualidade aí: as máquinas dependem de nós para a sua evolução, e nós dependemos delas para a nossa sobrevivência. O que está em jogo é como cuidaremos dos efeitos dessa nova espécie que surge a partir da união de duas entidades distintas.
Considerando que as tecnologias são capazes de moldar a nossa forma de enxergar o mundo e sentir a vida, esse debate é crítico. E é muito mais profundo, e vai muito além da questão da censura ou do cerceamento da liberdade de expressão.
O que está em jogo são as escolhas daquilo que queremos fazer da tarefa histórica que envolve o desenvolvimento das subjetividades do futuro, ou ainda, da nossa humanidade futura. Sob essa ótica, ampliar e aprofundar esses temas é assumir a responsabilidade ética de cuidar das novas tecnologias da mesma forma que deveríamos cuidar das novas gerações.