O ser humano e a eterna mania de culpar o outro
Repensar esse hábito não é uma questão de relevar os erros dos outros, mas sim de entender nossa reação a eles
O casamento, dizia, não andava bem. Mas a culpa era da esposa. Os filhos gastavam muito e davam muito trabalho, queixava-se: culpa dessa geração! No trabalho, muita dor de cabeça. Colegas, clientes e chefe, todos culpados!
Não que a vida fosse ruim, mas poderia ser muito melhor, não fossem aqueles que não sabiam votar. Violência na cidade grande? Culpa dos bandidos! E aquela briga no trânsito da semana passada não tem nada a ver com esse assunto, até porque a culpa, claro, era do outro motorista.
Nem quando havia uma enorme evidência da sua responsabilidade nas desgraças da vida ele se permitia perceber os próprios equívocos. No dia em um engano seu foi visto por todos, incluindo ele mesmo, não teve saída.
Terceirizou a responsabilidade para uma instância metafísica com a qual ele parecia não ter nenhuma relação que não fosse a de vítima: “Mas é porque eu pensei que era para ser de outro jeito.” Como se o pensamento, essa instância separada dele, o houvesse manipulado.
Mas um discurso que se apresenta sem furos não permanece de pé por muito tempo.
Um dia, ele começou a perceber que não se tratava de ignorar os problemas causados pelos outros, afinal havia mesmo tomado umas pisadas de calo durante a vida. E entendeu, finalmente, que era preciso se perguntar de que maneira ele contribuía para a perpetuação dos seus próprios sofrimentos.
Essa pergunta é crucial na trajetória de uma análise, mas não é fácil fazê-la. Fácil é a ilusão contida no pensamento de que a culpa é sempre e exclusivamente do outro. A boa notícia é que enfrentar a dificuldade dessa pergunta costuma ser libertador.
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Encarar o fato de que, muitas vezes, somos parte ativa na produção de situações que nos fazem sofrer exige um movimento de resposta que pode carregar uma potência emancipatória.
Talvez a maior dificuldade de se fazer essa pergunta seja o encontro com a verdade. O curso de uma análise costuma aproximar o sujeito dessa verdade. Como dizem os psicanalistas, as coisas que mais podem contribuir para o amadurecimento são, ao mesmo tempo, as que temos mais medo de encontrar.