Desde a descoberta da dupla hélice do DNA por Watson e Crick em 1953, um admirável mundo novo se abriu, com importantes desdobramentos para a medicina. Ultrapassamos muitas fronteiras, impressionantes descobertas foram feitas, deciframos nosso genoma e aos poucos fomos aprendendo a utilizar esse conhecimento para o bem da humanidade.
Esse caminho permitiu não apenas entender melhor a constituição e o funcionamento do ser humano, mas também tratar uma série de enfermidades — entre elas as doenças raras. Um exemplo dessas inovações são as terapias gênicas que, depois de décadas de pesquisa e desenvolvimento, têm sua segurança e eficácia cada vez mais estabelecidas.
Trata-se de um procedimento no qual utilizamos genes humanos sadios para substituir genes defeituosos. Isso pode ser feito pela introdução do gene normal diretamente no indivíduo através de um vetor (usualmente um vírus inofensivo) ou pela retirada de células do paciente com a doença para sua manipulação em laboratório e reintrodução das células processadas — agora portando o gene normal — no indivíduo.
Em agosto de 2020, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou a primeira terapia gênica no país, um produto para tratar uma forma específica de deficiência visual causada por degeneração da retina relacionada à mutação em um gene, cuja versão normal é administrada aos pacientes com o objetivo de interromper o processo degenerativo.
Logo em seguida, outra terapia gênica foi aprovada em nosso país, essa para o tratamento de pacientes com atrofia muscular espinhal (AME). O procedimento compensa a falta do gene do neurônio motor de sobrevivência funcional 1 (SMN1), que leva à perda progressiva dos neurônios responsáveis pela respiração, deglutição e locomoção, entre outros.
Mais recentemente, tivemos outro importante avanço: dados preliminares de estudo de fase 1/2 mostraram resultados promissores para uma terapia gênica voltada à síndrome de Hunter (mucopolissacaridose tipo II, ou MPS II). Os dados de oito pacientes com até 5 anos de idade — dois deles do Brasil — mostraram, além de um perfil de segurança satisfatório, potencial para restaurar a atividade enzimática dentro do sistema nervoso.
A MPS II interfere na capacidade de o organismo reciclar substâncias conhecidas como glicosaminoglicanos (GAGs). Estas se acumulam em células de todo o corpo pela deficiência de uma enzima, o que leva ao comprometimento da estrutura e da função de diversos tecidos e órgãos, incluindo ossos, articulações, vias respiratórias, fígado e, muitas vezes, o sistema nervoso.
A terapia utiliza um vírus modificado, no qual os genes virais são substituídos por genes humanos que induzem a síntese da enzima deficiente. Há mais de 20 anos estudamos o tema no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, desde a criação do pioneiro Centro de Terapia Gênica. Em 2020, dois pacientes com MPS II receberam o tratamento pela primeira vez fora dos Estados Unidos, com resultados preliminares encorajadores.
Os achados desse e de outros estudos pelo mundo nos animam. A terapia gênica mostra, cada vez mais, perspectivas positivas para o tratamento de diversas doenças genéticas. Para tanto, é fundamental que sigamos avançando nas pesquisas, bem como na identificação precoce dessas enfermidades, com estratégias como o teste do pezinho.
Além disso, é preciso aumentar a conscientização sobre essas doenças e ampliar o acesso ao diagnóstico, permitindo que mais famílias e pacientes se beneficiem dessas inovações que apontam para um futuro de mais saúde e mais qualidade de vida para as pessoas com doenças raras.
* Roberto Giugliani é professor do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), médico do Serviço de Genética Médica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, presidente honorário do Instituto Genética para Todos (IGPT) e cofundador da Casa dos Raros