“Com todo o respeito, mas o que a senhora viu em mim?” Fiquei chocada com a pergunta, saída da boca de um rapaz que acabara de completar 18 anos.
Como era possível que alguém tão jovem, cheio de potencial e de vitalidade, carregasse tamanha certeza de que não tinha nada a oferecer para o mundo, a ponto de ficar perplexo com o fato de que alguém queria, sim, conversar com ele e conhecê-lo melhor?
Para responder a essa pergunta, preciso voltar a 2014, quando comecei minha segunda faculdade. Mãe de primeira viagem, voltando de uma temporada fora do Brasil, passei a entender melhor meu propósito de vida e resolvi reconstruir a carreira.
Sempre fui apaixonada por animais, o que me levou à medicina veterinária. Logo descobri a área de bem-estar animal e minha vida nunca mais foi a mesma. Trabalhei em fazendas Brasil afora, onde aprendi lições valiosas. Pude compreender, por exemplo, o impacto das políticas sociais para a população de baixa renda.
Eu, moça da cidade, conheci jovens orgulhosos de serem os primeiros da família a ingressar numa universidade, após gerações de pais e avós analfabetos que labutaram a vida toda no campo.
Também conheci de perto a realidade nada animadora da produção de alimentos de origem animal. Confirmei ali uma antiga suspeita: onde há maus-tratos e violência contra animais, há também abuso e violação de direitos humanos. São dois lados de uma mesma moeda – a da objetificação dos seres vivos.
+ Leia também: O futuro da comida está no passado ou na comida do futuro?
Foi nessa época que a terapia assistida por animais entrou na minha vida. Afinal, se há correlação entre a maneira como tratamos as pessoas e os bichos, um ambiente saudável e acolhedor para os animais deve ser benéfico também para a saúde física e psicológica de quem interage com eles.
Essa foi a ideia que levou à criação, em 2021, do Natureza Conecta. Começamos de forma modesta, numa propriedade familiar no interior de São Paulo e com poucos animais.
Três anos depois, o instituto conta com uma fazenda 22 mil metros quadrados, mais de trinta animais (nossos “co-terapeutas”), entre cavalos, vacas, cabras, porcos e cães, e já atentemos 89 pacientes com idades entre 6 e 19 anos.
Benefícios da terapia assistida por animais
Volto ao início do artigo.
Aquele jovem, que era interno da Fundação Casa — que aplica medidas socioeducativas em menores infratores —, era também produto de um ambiente social, econômico e familiar desolador, jamais experimentara um olhar de acolhimento e aprovação.
Isso até conhecer o Flash, um de nossos cavalos, que durante seis meses frequentou a Fundação Casa e promoveu uma mudança notável na vida daquele rapaz, devolvendo-lhe a capacidade de acreditar em si próprio.
Tal é o poder da terapia assistida com animais: ela oferece às crianças e jovens excluídos uma chance de melhorar sua sociabilidade e de curar feridas psicológicas, preparando-os para uma vida plena, saudável, produtiva e pacífica.
Um funeral para o galinho Chico
Deixo aos céticos uma última história, que aconteceu há poucos dias: nosso galinho Chico faleceu. Preparamos um pequeno ritual, como um velório, para que as crianças tivessem a oportunidade de se despedir.
Um garoto de sete anos, cujo pai morrera de forma violenta na rua de casa, se aproximou e disse: “tia, posso ver o Chico?” Respondi que sim. Erguemos juntos a toalha que cobria seu corpo. O garoto perguntou: “tia, se eu abrir o olho do Chico, ele volta a viver?”
Expliquei que aquele era só o corpo do Chico. A força que o mantinha vivo, que faz com que cada um de nós seja a pessoa que é – nossa “alma” ou “espírito”, enfim – já estava no céu.
O menino olhou para o céu, depois para mim, depois para o Chico e respirou aliviado. Era óbvio que aquelas eram dúvidas que ele tinha sobre seu pai, e que provavelmente nunca tivera a chance ou a coragem de perguntar para alguém. Ele finalmente se sentia autorizado outra vez a ser feliz, pois entendera que não poderia ter salvo o pai.
Pouco depois dessa conversa, o menino começou a se aproximar de uma mãe adotiva – após incontáveis episódios de (auto)sabotagem com famílias que tentaram adotá-lo. Naquele dia, eu também respirei feliz e aliviada: Chico havia cumprido sua missão.
*Daniela Gurgel é veterinária e fundadora da ONG Natureza Conecta