Estamos em setembro e, a cada ano, dedicamos este mês a pensar, escrever e debater sobre a prevenção do suicídio. É um dos assuntos que evitamos em nossa vida cotidiana, pois aí se cruzam concepções religiosas, morais e jurídicas. Todos nós já questionamos a razão de nossa existência ou o sentido de um sofrimento intenso – seja de natureza econômica, amorosa ou outra qualquer.
De alguma maneira, se você está lendo estas linhas, é porque escolheu estar vivo. Sim, viver é uma questão de escolha. Ainda que o ponto de partida tenha uma dimensão espiritual, escolhemos crer. Nem todos escolhem, e isso foi tema de discussão durante toda a humanidade.
Segundo o livro História do Suicídio (Editora Unesp – clique para comprar), clássico de Georges Minois, a morte voluntária foi vista de diferentes ângulos no decorrer dos tempos. Houve desde a aceitação ordinária no Império Romano, como demonstram os escritos do filósofo Sêneca, até o confisco dos bens do morto e a exposição do seu corpo, sem direito a enterro, em outros períodos.
Posicionamentos tão opostos foram, até mesmo, encontrados em uma mesma sociedade e em uma mesma época. Enfim, os pontos de vista sobre o suicídio nunca foram unanimidade.
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No século 15, o advento da imprensa facilitou enormemente a difusão de novas ideias – um movimento sem volta. Passou-se a escrever mais também sobre o suicídio. No final do século 16 e início do 17, esse debate ganhou espaço público a partir dos Ensaios do filósofo francês Montaigne, o primeiro a redigir um texto a trazer argumentos a favor e contra essa “escolha”.
No século 17, o tema toma o teatro. Só nas peças de Shakespeare há 52 suicídios.
Tomemos Hamlet. O príncipe da Dinamarca convocado pelo fantasma de seu pai a vingar sua morte hesita muitas vezes a fazê-lo. É dele o “Ser ou não ser, eis a questão”. Ele fala um pouco mais adiante: “Ou pegar em armas contra o mar de angústias – E, combatendo-o dar-lhe fim? Morrer; dormir; Só isso.”.
Nessa peça, Ofélia (a amada de Hamlet) e Gertrudes (mãe de Hamlet) tiram a própria vida. Horácio, ao ver o protagonista morrendo, declara que beberá da taça envenenada. É o moribundo Hamlet que o exorta a seguir vivo. Por que alguém que questionou tanto sua própria existência convence o outro a continuar vivendo?
Minois defende que Hamlet não se mata justamente porque pode falar sobre isso. Ele é o único personagem da trama que questiona sua existência. Isso faz toda a diferença. Falar sobre a própria aflição, sobre suas angústias e incertezas, pode ser justamente o antídoto para a taça envenenada que passa na mão daquele que sofre intensamente.
Falar é um apelo à escuta. Atentar-se para o sofrimento do outro, considerá-lo legitimo e saber acolhê-lo é tarefa necessária e delicada. Há que notar que cada época da vida traz seus desafios à existência e, mesmo que cresçamos, temos que dar a devida importância aos sofrimentos que acompanham mesmo os que ainda estão em seus primeiros anos.
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O bardo inglês nos lembra disso em Romeu e Julieta. Quem de nós, na adolescência, já não teve o coração partido pela perda do ou da amada? Ou sentiu-se inadequado quando começou a perceber que os colegas podem ser cruéis com quem não se encaixa perfeitamente na norma? Muitas vezes, demoramos décadas para perceber que não é possível encaixar-se perfeitamente em padrão algum.
Essas dores dilacerantes ferem profundamente o sujeito em qualquer idade. Estar disposto a acompanhar o sofrimento dele, estando ao seu lado e suspendendo os próprios julgamentos, é a via privilegiada para aquele que se angustia possa encontrar resolução para tal questão.
A história mostra que os índices de suicídio são menores nas comunidades em que os vínculos sociais são mais fortes. Atravessar a tempestade quando não há previsão do nascer do sol não se faz sem a ajuda dos outros.
* Fernanda Zacharewicz é psicanalista, doutora em psicologia social pela PUC-SP e editora da Aller