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Para as respostas urgentes, a Ciência lenta

A pandemia de coronavírus pede respostas que só uma ciência bem feita pode trazer. Do contrário, ficaremos patinando nas mesmas perguntas de sempre

Por Bruno Gualano, fisiologista*
18 jul 2020, 09h11

Este texto foi escrito para a campanha #CientistaTrabalhando

Em 2014, um estudo assinado por pesquisadores americanos causou sensação na área da Nutrição. Segundo o artigo, o suplemento alimentar chamado HMB (β-hidroxi-β-metil-butirato) foi capaz de aumentar a massa magra de atletas em mais de sete quilos em apenas três meses. Estaríamos diante de um nutriente com capacidade superior de criar músculos à dos esteróides anabolizantes?

Muito bom para ser verdade. Pelo menos era o que eu respondia aos que me perguntavam sobre o resultado extravagante. Enquanto isso, a empresa que produzia o suplemento — e que patrocinara o estudo — acumulava lucros estratosféricos. “Professor, os cientistas não podem fazer nada a respeito?”. Evidente que sim: eles podem fazer ciência!

É ofício do cientista replicar pesquisas para comprovar ou refutar dados e hipóteses. Mas a Ciência tem seu próprio tempo. E algumas pessoas ou entidades parecem não estar dispostas a respeitá-lo.

Em meados de março deste ano, Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, estava preocupado com o avanço avassalador da pandemia da Covid-19 sobre a vida dos americanos e da economia de seu país – mais com esta do que com aquela, como ficaria comprovado pelas suas falas e ações ao longo da crise. Então ele apelou aos cientistas: “Façam-me um favor: acelerem, acelerem!”. Era uma referência ao desenvolvimento de uma vacina contra o coronavírus.

Coube ao editor-chefe da revista Science, H. Holden Thorp, por meio de editorial, ensinar fundamentos pueris da Ciência ao mandatário da nação mais rica do globo. “A vacina precisa de uma base científica. Deve ser manufaturada. Tem de ser segura. (…) Não podemos violar as leis da natureza para chegar lá”. E, ante à ironia de que a cobrança por celeridade na descoberta da vacina vinha justamente daquele que, pouco tempo atrás, ensaiava uma força-tarefa antivacina, o editor da Science arrematou: “Faça-nos um favor, sr. Presidente. Se você quer algo, comece a tratar a Ciência e seus princípios com respeito”.

Por princípio, a Ciência boa é lenta. Os pesquisadores precisam de “tempo para pensar, tempo para ler, tempo para falhar”, como ressalta o delicioso manifesto da Slow Science Academy, fundada em 2010 em Berlim e que reúne adeptos de todo o mundo.

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Isso não significa que cientistas são criaturas insensíveis a todo sofrimento humano provocado pela crise do coronavírus. “Todos estamos neste jogo também [da Ciência rápida]. Mas sustentamos que isso não pode ser tudo”, assinalam os manifestantes. A meticulosidade e a replicabilidade funcionam como lombadas na rota da Ciência: ao desacelerá-la, qualificam-na pela prudência.

É compreensível — e até mesmo desejável — que, durante a pandemia, as pessoas busquem saídas na Ciência. Porém, a imperícia decorrente da pressa pode ruir a confiança no método científico.

Recentemente, dois artigos publicados nas revistas científicas The Lancet e The New England Journal of Medicine sobre tratamentos medicamentosos para Covid-19 (entre eles, a famigerada hidroxicloroquina) tiveram que ser retratados, porque os pesquisadores não conseguiram sustentar seus dados diante de questionamentos feitos por outros especialistas. E algumas das falhas que culminaram com a “despublicação” dos artigos eram básicas. Elas sugerem, portanto, que autores, revisores e editores abdicaram em alguma medida do alto rigor de avaliação que sempre norteou a política desses periódicos.

Em tempos normais, o processo de revisão por pares de um estudo em revistas científica de alto impacto pode ultrapassar um ano. É um ano de discussões e análise criteriosa do trabalho. Já durante a pandemia de Covid-19, decisões são tomadas em 48 horas. Sobra espaço à meticulosidade e à prudência na nova Ciência?

É bom lembrar que episódios como esse dão munição aos sempre armados negacionistas, ávidos por descuidos que lhes permitam renovar seus discursos apologéticos à falta de razão. Trumpistas e bolsonaristas, por exemplo, celebraram a retratação daqueles estudos que eu mencionei antes como evidência de eficácia da cloroquina. É uma interpretação, digamos, excêntrica dos fatos sucedidos. Mas aprendemos que, na ausência das suas lombadas, a Ciência pode ser vítima de acidentes por excesso de velocidade.

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Nesse momento de crise, o cientista não deve insuflar expectativas. Ele precisa, assertivamente, distinguir o que são suas hipóteses dos fatos em si, que emergem tão somente do teste sistemático das hipóteses. A beleza é que o método científico, frequentemente, produz fatos que desmentem hipóteses. Então, os racionais trocam as hipóteses. Os negacionistas descartam os fatos.

Na nova pandemia, a pressão social por respostas tem sido elevada. Porém, como haveria de ser, predominam as incertezas. Estas, contudo, são a força-motriz que alimentam nossas perguntas, hipóteses e desentendimentos entre os pares. Dado o curto curso das coisas, o não saber diante de um jornalista ou de um grupo de alunos ou colegas cientistas, por exemplo, não é sinal de fragilidade intelectual. Pelo contrário, é um exemplo de virtuosidade socrática que reconhece no desconhecimento a mola propulsora do avanço científico. Como ensina Marie Curie, “na vida, não existe nada a temer, mas a entender”.

E quanto ao tal suplemento alimentar, supostamente capaz de criar músculos como esteroides? Bem, (apenas) no final de 2019, meu colega Dr. Guilherme Artioli publicou um novo estudo. Em condições experimentais bem controladas, o efeito do nutriente foi negligenciável. Outros grupos independentes (e sem conflitos de interesse com a indústria) também não conseguiram reproduzir os achados da pesquisa americana. A meticulosa análise desagua na conclusão de que, até que se demonstre o contrário, o nutriente em questão não produz ganhos espetaculares de massa magra. Há quem diga que a resposta poderia ter chegado bem antes. Poderia, mas nesse caso, não viria da Ciência. Seria uma resposta, afinal?

*Bruno Gualano é professor da Faculdade de Medicina da USP. Fisiologista, conduz estudos sobre promoção de estilo de vida saudável para populações clínicas.

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