Locomover-se é a capacidade que muitos organismos têm de se movimentar por seus próprios meios no habitat em que vivem, já ensinava a biologia. Se dermos alguns passos (muitos passos) atrás, vamos encontrar o caminhar nos primórdios da nossa espécie, inclusive como uma característica que nos diferenciou dos nossos primos mais primitivos. Foi caminhando que o Homo sapiens ficou de pé na África e se pôs a explorar os quatro cantos da Terra.
O pé ante pé trouxe-nos até aqui, e percorremos uma das maiores invenções do ser humano, a cidade. Segundo a ONU Habitat, mais da metade da população mundial vive em cidades hoje — mais de 80% no caso do Brasil. Isso significa que sempre caminhamos para o progresso? Ora, é um desafio mensurar atualmente a qualidade de vida de quem mora nas cidades: se por um lado o ambiente urbano proporciona acesso a serviços e oportunidades, por outro coloca problemas conhecidos como poluição, desigualdade social e dificuldades de locomoção.
Transitamos pelo espaço público com as nossas pernas, com a ajuda de aparatos como a cadeira de rodas, ou através de máquinas, como a bicicleta e o patinete, o automóvel, o ônibus e o trem. Mas não se trata apenas de deslocar-se de um ponto a outro. A vida entre edifícios, conceito cunhado pelo urbanista dinamarquês Jan Gehl, contempla a importância da diversidade de espaços e atividades na dinâmica das cidades, e isso envolve experiências ao ar livre tão diferentes como comércio de rua, entretenimento e prática de exercícios. Todas elas são influenciadas por uma série de questões, sendo uma das mais importantes as condições para o caminhar.
E é aí que deparamos com a calçada. Ela conecta tanto aspectos das nossas vidas que podemos afirmar que, se uma cidade possui boas calçadas, existe uma maior chance de a sua população gozar de boa saúde. Mais gente caminhando significa mais movimento e qualidade de vida para as pessoas e suas cidades, com a consequente redução nos gastos em saúde pública.
Não precisamos ir muito longe para pensar que talvez este não seja o caso do Brasil, não é mesmo? Um estudo intitulado Calçadas do Brasil, realizado pela organização Mobilize em 2019, indica que nenhuma das 27 capitais brasileiras oferece condições “civilizadas” para a circulação de pedestres em suas calçadas, ruas e faixas de travessia. São comuns problemas como buracos, degraus, faixas apagadas, falta de conexão com outros meios de transporte, semáforos ausentes ou deficientes, ambientes poluídos, carros passando perto demais…
A pandemia desencadeada pelo coronavírus deixou ainda mais nítida a falta de cuidado com o passeio e com o espaço público em geral. Calçadas estreitas não permitem o distanciamento social requerido; lugares abertos, que poderiam ser uma alternativa de alívio diante do confinamento, muitas vezes são pouco cuidados e mal iluminados; quase não encontramos bons locais para descanso em dias de calor ou chuva. Sem contar as muitas pessoas que simplesmente não podem ficar em casa e precisam de opções seguras para circular.
Assim, mais do que nunca precisamos pensar numa nova realidade para as nossas vias e calçadas. Várias cidades do mundo vêm optando por ceder espaços das ruas à criação de ciclovias e à ampliação de calçadas. Em algumas situações, ruas são completamente fechadas aos carros e viram ambiente exclusivo de pedestres. Inicialmente voltada para os deslocamentos necessários, a mobilidade ativa, que prioriza deslocamentos a pé ou por meios não motorizados (bike e patinete, por exemplo), aponta mudanças que podem ser muito bem-vindas à saúde pública e ambiental.
A cidade de Milão, na Itália, é uma boa referência do que já acontece por aí. Ela instituiu no fim de abril o plano Strade Aperte (estrada aberta, em português). O programa inclui obras em mais de 35 quilômetros de ruas que receberão novas ciclofaixas temporárias de baixo custo, calçadas mais largas, limites de velocidade de 30 km/h e ruas prioritárias para pedestres e ciclistas. Tudo para oferecer mais estímulo e segurança a quem caminha ou pedala. Vale lembrar que Milão é uma das cidades mais poluídas da Europa, e é a capital da Lombardia, localidade mais afetada pela Covid-19 na Itália.
Na América do Sul, cidades como Bogotá (Colômbia) e Buenos Aires (Argentina) também optaram por promover a mobilidade ativa. Na capital argentina, foram criadas faixas na avenida Nove de Julho, que tem 200 metros de largura e faz a conexão norte-sul, dando espaço para uma nova ciclovia temporária e calçadas ampliadas. O objetivo é a extensão do plano para outras áreas da capital como alternativa a quem quer evitar o transporte público, priorizar uma alternativa mais saudável e menos poluente do que o carro e, ainda, diminuir o número de acidentes graves envolvendo bicicletas que ocorrem fora das faixas reservadas a elas.
Na esteira da Covid-19, agora que caminhamos para a volta das atividades regulares em reabertura gradual, a academia de ginástica talvez não seja a melhor escolha para as atividades físicas por enquanto. Por isso, melhores condições de caminhabilidade são um convite para andar e se exercitar ao ar livre, sempre respeitando os protocolos de segurança, claro. A adesão à atividade física ajuda a combater a obesidade e os males que podem surgir em decorrência dela, como diabetes, hipertensão e problemas cardiovasculares e nas articulações.
Enquanto o trabalho remoto virou realidade para muitos e a volta às aulas ainda é uma incógnita em várias regiões, outras propostas ganham força no “novo normal”. Imagine poder acessar parque, comércio, saúde, cultura e entretenimento a apenas 15 minutos de casa, não importa em que ponto da cidade você viva. Esse é o conceito da “Cidade de 15 minutos”, criado por Carlos Moreno, professor de urbanismo da Sorbonne e abraçado pela prefeita de Paris, Anne Hidalgo. A ideia é que a população esteja mais integrada aos seus bairros e possa comer, cuidar de si mesmo, se divertir, fazer atividade física e ganhar a vida em seu pedaço. Sem dúvida, isso traz um incentivo para caminhar mais, conhecer melhor o lugar onde se vive, praticar a empatia e, ainda, fomentar a economia local.
Esses são alguns modelos que, ao revolucionar o espaço urbano e priorizar o caminhar na cidade, têm tudo para contribuir com uma sociedade menos propensa a desenvolver doenças e a um sistema de saúde menos sobrecarregado. São ideias que geram economia aos governos e deixam as pessoas mais livres e felizes. A data de 22 de setembro marca o Dia Mundial sem Carro, ocasião em que diversas cidades promovem ações para repensar os modos de deslocamento e discutir políticas públicas de ocupação e fruição do espaço público. É um convite e tanto para quem não deu os primeiros passos refletir e caminhar rumo a mudanças de atitude que farão diferença para si e toda a sociedade.
* Wans Spiess é cofundadora do CalçadaSP, iniciativa que usa linguagens lúdicas para chamar a atenção para as calçadas e incentivar o caminhar