Não há como enfrentar as intempéries da vida sem expressar algum tipo de comportamento, postura ou manifestação do nosso corpo. O ser humano é um ser racional e reacional e muitas vezes essa capacidade privilegiada de raciocinar e refletir gera um tremendo impacto no âmbito emocional, que, por sua vez, promove distintas alterações nos diversos órgãos e sistemas — notadamente no aparelho cardiovascular.
Nossas reações orgânicas ao estresse são individuais e influenciadas por características de personalidade, oscilações hormonais e fatores externos. Mas, nos últimos tempos, todos nós fomos desafiados pela pandemia do coronavírus, que aguça expectativas e incertezas que se refletem no equilíbrio da mente e do corpo. Após a Covid-19, as pessoas já não são mais as mesmas do ponto de vista psíquico e a apreensão, a angústia, a ansiedade e a depressão se tornaram mais comuns em todos os ambientes sociais.
As famílias estão temerosas quanto ao futuro da educação dos filhos, os gestores de empresas estão extremamente inseguros quanto aos próximos passos da economia e a sociedade encara, com tristeza, um cenário de desemprego, falência e falecimento, inclusive de entes queridos. É um panorama que contribui inevitavelmente para mudanças emocionais e comportamentais capazes de repercutir no coração, favorecendo o surgimento ou o agravamento de doenças cardiovasculares.
Paola Gilsan, pesquisadora da Escola de Saúde Pública de Harvard, nos Estados Unidos, coordenou um importante estudo envolvendo 16 mil pessoas a fim de entender a relação entre fatores emocionais e o desenvolvimento de complicações cardíacas. Publicado no renomado The Journal of the American Medical Association (JAMA) em 2015, o trabalho traz dois resultados relevantes e interessantes. Primeiro, demonstra que pessoas depressivas ou que estão deprimidas apresentam maior risco de morrer de uma causa cardiovascular. Segundo, aponta que adultos com mais de 50 anos vivenciando uma depressão têm um risco duas vezes maior de sofrer um acidente vascular cerebral (AVC).
Na mesma época do estudo de Harvard, a Universidade Colúmbia, também em solo americano, investigou, em 4 500 pessoas, a conexão entre estresse e depressão na rotina e a probabilidade de ter entupimentos nas artérias do coração (a doença arterial coronariana). As artérias coronárias são estruturas essenciais para a irrigação e nutrição do músculo cardíaco e, quando se encontram cronicamente obstruídas por placas de gordura, levam a um infarto. A pesquisa, liderada pela médica Carmela Alcantara e publicada na revista científica Circulation, coloca a conjunção entre estresse e depressão como uma “tempestade perfeita” que eleva em até 50% o risco de morte por infarto.
Tais evidências nos indicam que é muito difícil dissociar o estresse que atinge a mente daquele que acomete o sistema cardiovascular. Ambos estão intrinsecamente ligados em virtude de um agente fisiológico em comum, a resposta inflamatória. Sim, estresse gera inflamação. Quando estamos sobrecarregados, ansiosos, deprimidos ou inseguros, liberamos hormônios do estresse que desencadeiam um processo inflamatório. Ele não poupa os vasos sanguíneos, o coração e o cérebro.
Sabemos que a inflamação crônica contribui com o depósito gradual das placas que entopem as artérias. Em 2017, um estudo tocado pela equipe da pesquisadora Ilze Bot concluiu que pessoas estressadas tendem a ter mais infartos em função da maior resposta inflamatória no organismo. O trabalho comprovou o papel da inflamação desencadeada pelo estresse no depósito progressivo das placas de gordura nos vasos.
Voltando para os dias de hoje, notamos que a pandemia mudou o estilo de vida de muitas pessoas. Milhares de brasileiros estão se alimentando pior, fazendo menos atividade física e enfrentando a tensão emocional. Precisamos estar atentos a isso, inclusive porque a vivência de emoções negativas aumenta o risco de hipertensão e arritmias cardíacas. Ainda em 2019, o professor de psicologia Peter Gianaros se aprofundou sobre o assunto e mostrou que os circuitos neurais de uma pessoa — suas inúmeras conexões entre os neurônios — são particularmente afetados em momentos de ansiedade e hostilidade, situação que amplia a escala e magnitude dos problemas cardiovasculares independentemente de outros hábitos, saudáveis ou não.
A Covid-19 mudou a concepção de vida das pessoas e tem acarretado um profundo impacto social e emocional que pode transbordar para a saúde cardiovascular. Precisaremos aprender a conviver com a nova realidade, buscar alternativas para se cuidar e prevenir a sobrecarga e, cientes da estreita ligação entre estresse mental e estresse cardíaco, manter o acompanhamento médico em dia pelo bem do coração.
* Edmo Atique Gabriel é cardiologista e cirurgião cardiovascular, professor livre-docente, conselheiro de residência médica do Ministério da Educação e autor do blog Coração Moderno