Brasileiros com esclerose múltipla precisam de novos tratamentos no SUS
Governo nega incorporação de medicamento que ajudaria paciente com formas mais agressivas da doença. Especialista traz o impacto disso
Uma das coisas que aprendi no início da minha carreira, e que me acompanha até hoje, é olhar para o paciente como um indivíduo inteiro, e não só para a sua doença. E na esclerose múltipla (EM) isso não poderia ser diferente. São mães e pais, profissionais, filhas e filhos, estudantes, noivas e noivos. Pessoas inteiras que enfrentam inúmeros desafios, sendo a EM “apenas” um deles.
A esclerose múltipla se manifesta por meio de sintomas como formigamento, fadiga, perda de força e visão dupla ou borrada. São cerca de 40 mil pessoas afetadas no Brasil, e para as quais o tratamento deve ser escolhido de forma individualizada, de acordo com o nível de atividade da doença.
Neste contexto, recentemente tivemos um revés triste, com a negativa da Conitec para a incorporação de novas terapias mais modernas para a doença no SUS, sendo uma delas a primeira medicação oral para um dos tipos mais graves da doença, chamado de EM altamente ativa.
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Tenho um exemplo marcante para mostrar o impacto disso. Em 2020, em plena pandemia da Covid-19, atendi uma paciente com 21 anos, moradora de uma cidade há mais de 400 quilômetros de Porto Alegre, que trabalhava enquanto fazia o curso de ciências contábeis. Ela apresentava sintomas como tontura, desequilíbrio, dor no lado esquerdo do rosto e dormência na metade do corpo direito.
Após uma investigação, chegamos ao diagnóstico: EM altamente ativa. A paciente teve dois surtos em um curto espaço de tempo e possuía inúmeras lesões ativas no cérebro. Ao mesmo tempo, queria continuar trabalhando e estudando, além de preservar a liberdade de planejar a sua vida pessoal.
Nós discutimos o tratamento, porque, na região onde ela reside, não havia nenhum centro de infusão – e a viagem para Porto Alegre, com perda de dias de trabalho, dificultava o uso de medicamentos infusionais e retornos frequentes. Eis que ela conseguiu acesso à cladribina oral. Sem necessidade de viagens, mas com um tratamento eficaz em mãos, a paciente concluiu seus estudos e hoje toca a vida com plenitude.
É por conhecer a realidade na ponta – e por saber que podemos, sim, mudá-la – que fico profundamente decepcionado com a negativa de inclusão da cladribina oral no SUS. Há anos essa medicação já é aprovada pela Anvisa para EM altamente ativa, o que significa que está disponível na rede privada. Por que não disponibilizá-la para toda a população que precisa dela?
Deixo claro aqui: não é que estejamos sem opções. Nós temos tratamentos infusionais para esse grupo de pacientes, mas precisamos de mais para atender as necessidades específicas e oferecer o melhor caminho para cada um em um país continental como o Brasil.
Dados do DATASUS revelam que 43% dos brasileiros com EM precisam viajar mensalmente para retirar sua medicação e realizar seus tratamentos. No Rio Grande do Sul (RS), onde eu atuo como neurologista, a porcentagem é ainda maior: são 54% das pessoas que todo mês lidam (como podem) com a logística e custos de se dirigir a outra cidade só para receber a infusão.
Penso em quantas mulheres e homens abandonaram ou não fazem corretamente o tratamento por não poderem faltar todo mês no trabalho. Quantos pais que não têm com quem deixar seus filhos para encarar viagens de longas horas até um centro de referência.
E penso também naqueles pacientes que não têm recursos financeiros para fazer isso, que têm que optar entre o transporte ou pôr comida na mesa. Pelo lado da administração pública da saúde, também me preocupo com os custos para ajudar esses pacientes, principalmente para prefeituras menores, com verbas apertadas. É desafiador o cenário no Brasil para aqueles que dependem unicamente do SUS, com limitações nas opções de tratamento e rigidez das diretrizes terapêuticas.
A cladribina oral é empregada em sistemas públicos de saúde de vários países (como Reino Unido, Canadá, Irlanda e Austrália). Já nos congressos internacionais, nos artigos científicos e mesmo no dia a dia, vemos os bons resultados desse tratamento, capaz de manter a doença sob controle por no mínimo quatro anos.
Para nós, médicos, que convivemos todos os dias com o impacto da esclerose múltipla juntos com familiares e pacientes, é angustiante ver as terapias modernas serem aprovadas no Brasil há três ou quatro anos, mas ainda ficarem de fora do SUS e, portanto, inacessíveis aos próprios brasileiros.
Por Douglas Kazutoshi Sato (CRM 40770 RS), neurologista e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS)