Nasci compartilhando riscos comigo mesma. Sou um dos raros diagnósticos de atrofia muscular espinhal (AME 5q) tipo III, uma doença genética, progressiva e sem cura. Meu tratamento tem um custo elevado por ano: são cifras que ultrapassam o meu orçamento e o da maioria das pessoas que compartilha o mesmo risco que eu.
Mas, em 2019, o Ministério da Saúde decidiu compartilhar esse risco, pagando meu tratamento caso ele fosse eficaz. A ideia — justa, simples e resumida — faria com que o laboratório (Biogen) que fornece o nusinersena só fosse pago se o seu medicamento comprovadamente trouxesse benefícios para mim e para outros pacientes.
Bom para todo mundo. O Governo Federal empregaria nossos impostos em tratamentos comprovados, o laboratório receberia o pagamento de acordo com o que cumpre e eu teria acesso ao remédio que me entrega qualidade de vida. Eu e tantos outros indivíduos.
Teríamos, porque depois de um ano da criação da portaria 1.297 (que estabeleceu o que se chamou de “compartilhamento de risco”), outra notícia surpreendeu todos os envolvidos nesse processo. Nas palavras do Ministério da Saúde, “não foi encontrada solução que viabilizasse a aquisição e dispensação do nusinersena para atender aos pacientes com atrofia muscular espinhal tipos II e III, tal como originalmente planejado. A orientação é que a Biogen faça uma nova submissão à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec)”.
A questão vai além da decepção dos pacientes que necessitam do medicamento. Hoje, o nusinersena é o único tratamento disponível no Brasil para todos os subtipos da atrofia muscular espinhal. Há ainda o atraso de mais de um ano, prazo que não atende às necessidades de pessoas que vivem com uma doença neurodegenerativa.
Afinal, para quem fica o risco dessa decisão? O risco de vida de pessoas como eu não é compartilhado com ninguém. Estou falando de gente que busca amenizar em seu cotidiano os sintomas progressivos da atrofia muscular espinhal, que a cada dia avança sem se importar com a burocracia, sem obedecer a leis.
O medicamento foi aprovado contra a atrofia muscular espinhal pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2017 — sem restrições por subtipo, idade ou condição clínica. Apesar do registro sanitário, o Sistema Único de Saúde (SUS) incorporou o tratamento nos moldes tradicionais apenas para os pacientes do tipo I da doença. Ainda assim, muitos deles sofrem com restrições de acesso. Pacientes com os tipos II e III (quase 500 brasileiros) ainda aguardam uma via de acesso ao tratamento. O compartilhamento de risco era uma possibilidade que se perdeu no momento.
A cada novo pedido de incorporação, inicia-se um novo processo na Conitec. Conforme as regras, ele deve ser concluído dentro de até 360 dias (180 dias para avaliação da tecnologia e outros 180 dias para publicação do protocolo clínico). Tendo em vista que essa é uma doença degenerativa, mais um ano na espera pelo tratamento pode significar a perda da capacidade de andar e comer, por exemplo. Ou mesmo de escrever um texto como este.
Conclusão: durante mais de um ano, o acesso a esse tratamento não foi oferecido e o risco deixou de ser compartilhado. Esse risco continuará a existir, mas só para um lado da história: o lado do paciente. Esse é um risco que ameaça a vida e que mina a esperança de pessoas. Falta um pouco de ordem e um tanto de progresso para termos o mínimo de dignidade.
*Laissa Guerreira tem 15 anos e foi diagnosticada com atrofia muscular espinhal tipo III. É embaixadora mirim da Associação dos Amigos da Atrofia Muscular Espinhal (AAME).