A força criativa e psíquica de uma mulher trans numa sociedade intolerante
Psicanalista reflete sobre preconceito e violência de gênero em cima de um filme vencedor do Oscar
O filme Uma Mulher Fantástica, realização chilena que venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro de 2017, gira em torno de Marina, uma mulher trans, garçonete e cantora, que presencia a morte súbita de seu namorado, 20 anos mais velho, causada por um aneurisma.
A história começa com uma bela cena em que a protagonista canta e Orlando, o namorado, a observa. Em seguida, eles comemoram seu aniversário em um restaurante. Entre conversas, risadas e beijos, fica nítido quanto se gostam e como estão felizes.
Mas, nessa mesma noite, Orlando passa mal. Marina, apreensiva, o leva até o hospital, mas ele não resiste. A partir desse momento, ela começa a enfrentar uma série de situações violentas por parte dos familiares de Orlando e até mesmo da Justiça.
Marina é perseguida por uma detetive que desconfia e insinua que ela teria agredido o namorado, uma vez que Orlando estava machucado em razão de uma queda da escada. Em determinado momento, a protagonista diz: “Não quero mais policiais, médicos, jalecos e uniformes, não quero nada.”
A personagem me tocou bastante por sua sensibilidade, força, inteligência e, principalmente, pela sua verdade. Há uma enorme dissonância entre Marina e as pessoas que a atacam.
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Uma passagem muito ilustrativa disso é sua luta pelo direito de se despedir do namorado. Todos tentam impedi-la, não informam o local do funeral e pedem que ela não vá “em respeito aos valores da família”. O irmão de Orlando, que se mostra, aparentemente, mais sensível à dor de Marina, chega a oferecer uma pequena parte das cinzas do falecido, o que soa como uma espécie de barganha para a mulher não ir ao velório.
Ela nega a oferta das cinzas (ou migalhas) e repete que seu único desejo é se despedir de quem amava. Em meio a tantos empecilhos, Marina consegue ir ao local, é hostilizada e depois perseguida pelo filho de Orlando e dois homens, que, na tentativa de conter sua força, a xingam e colocam durex em sua boca.
Apesar de tanto sofrimento, sua dor é transformada em ódio, e parece ser uma mola que a impulsiona a lutar com ainda mais vigor. Marina consegue entrar no crematório e finalmente se despede de Orlando. Seu luto agora tem lugar e é simbolizado por suas lágrimas.
Essa não é a única batalha de Marina. A protagonista luta pela cachorra que convivia com ela e Orlando e com a tentativa de tirarem tudo que lhe pertence. Expulsam-na da casa que dividia com o namorado, procuram incriminá-la e negar quem ela é, referindo-se à personagem com pronomes masculinos.
As pessoas ao redor se sentem incomodadas com “o que é” Marina e se julgam superioras por serem “normais”. Parece que a vida e a diversidade as ameaçam.
Diante de tamanha pobreza psíquica desses personagens, ficam ainda mais em evidência a capacidade criativa, a saúde e o engajamento de Marina. Ela luta pelo que lhe resta de vida e de afeto nessa trama, ou seja, sua cachorra e seus sentimentos.
Como ensinou o médico e psicanalista Donald Winnicott, “experimentar o viver criativo é sempre mais importante do que se sair bem”.
Uma Mulher Fantástica é uma reflexão que se passa nas telas e vem de outra cultura, mas tem muito a dizer aos brasileiros.
* Mariana Abdel é psicóloga e psicanalista, coautora do livro Mulheres no Cinema: Uma Análise do Feminino (organizado por Ana Carolina Nucci e publicado pela editora APMC) – Clique para comprar*
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