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Jogos e aplicativos que treinam o cérebro: dá pra confiar?

Em artigo para o Questão de Ciência, biólogo questiona a eficácia desses recursos que prometem nos tornar mais espertos e até nos proteger do Alzheimer

Por Luiz Gustavo de Almeida, biólogo*
20 set 2019, 13h09
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  • Faça uma busca rápida pelo termo “treinar o cérebro” na loja de aplicativos do seu celular. O resultado deve retornar uma centena de aplicativos prometendo ganho cognitivo. Na lista você vai encontrar “treine sua memória”, “eleve sua mente” e “treine o cérebro das suas crianças”.

    Os aplicativos oferecem um conteúdo gratuito limitado, e o pacote completo depende do pagamento de mensalidade ou anuidade. Um dos mais famosos nessa linha é o Lumosity, da empresa Lumos Labs. Lançado em 2014, mais de 10 milhões de pessoas já baixaram o aplicativo. As compras na plataforma variam de 2,52 a 210,77 reais.

    Todos queremos ter uma memória melhor, tomar decisões rápidas e evitar doenças como Alzheimer. O sucesso do aplicativo pode ser explicado, pelo menos em parte, por sua propaganda que promete soluções exatamente para esses problemas. Mas será mesmo que esses aplicativos treinam nossos cérebros? Tem algum estudo que já testou isso?

    Tem! E, como vocês verão, os estudos respondem à pergunta com clareza. E a resposta é não.

    Quem são eles?

    Para quem nunca ouviu falar nesses aplicativos, o Lumosity é descrito pelos desenvolvedores da seguinte maneira:

    “Um programa de treinamento cognitivo informatizado que promete melhorar várias habilidades cognitivas essenciais, incluindo memória, atenção, velocidade de processamento, flexibilidade mental, orientação espacial, raciocínio lógico e habilidades para resolver problemas”.

    O diferencial do programa de treinamento cognitivo da Lumosity é um conjunto de mais de 50 jogos. Cada jogo é do tipo quebra-cabeça 2D, projetado para treinar uma das habilidades mencionadas. Embora a ação principal do jogo envolva apenas apontar e clicar, o usuário tem o desafio de reconhecer padrões, seguir vários objetos simultaneamente, memorizar informações visuais e verbais, além de identificar padrões ocultos.

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    O nível de desafio dos jogos é geralmente definido pela quantidade de distrações, tempo limite, a complexidade do padrão a ser reconhecido, e, portanto, a quantidade de esforço cognitivo e de habilidade necessária.

    É um videogame, enfim, mas que promete melhorar o desempenho do usuário em tarefas diferentes das treinadas especificamente durante o jogo, o que eles chamam de transferência de treinamento. Tecnologia apresentada, vamos ao artigo científico.

    Quais as evidências?

    A própria empresa informa, em seu site, que um estudo foi feito com 4 715 voluntários. Metade deles treinou com o programa da Lumosity e a outra fez palavras cruzadas online para controlar efeitos do placebo. A conclusão: “após dez semanas, o grupo que usou o Lumosity melhorou mais do que o grupo que fez palavras cruzadas em uma avaliação integrada de cognição”.

    O estudo em questão foi publicado na revista Plos One, e os detalhes são os seguintes:

    Os 4 715 participantes foram divididos em dois grupos:

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    Grupo 1: 2 667 pessoas brincaram com os puzzles da Lumosity por 15 minutos, cinco dias por semana durante dez semanas.

    Grupo 2: 2 048 completaram palavras-cruzadas durante o mesmo período.

    O jogo de palavras-cruzadas foi escolhido porque, segundo os autores, “as palavras cruzadas constituem uma atividade mental desafiadora que se acredita, popularmente, ser benéfica para a cognição”.

    Passadas as dez semanas, as pessoas dos dois grupos fizeram uma bateria de testes envolvendo:

    1. Memória

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    2. Raciocínio gramatical

    3. Raciocínio aritmético

    4. Matrizes progressivas (reconhecimento de padrões)

    5. Testes Go/No-Go (uma espécie de “vivo ou morto” virtual), onde os participantes têm que responder a estímulos o mais rápido possível (VIVO) e evitar responder à distrações (MORTO)

    6. Testes de dois alvos – exige que os participantes recordem os locais onde objetos específicos foram mostrados rapidamente (menos de um segundo) e que depois somem, ignorando distrações.

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    O resultado foi fantástico! O grupo que treinou com o Lumosity acertou duas vezes mais questões que o grupo que treinou com palavras-cruzadas. A conclusão apresentada no artigo é similar ao que é encontrado no site da empresa:

    “Vistos em conjunto, esses resultados indicam que um programa de treinamento variado, composto por uma série de tarefas direcionadas a diferentes funções cognitivas, pode mostrar transferência para uma ampla gama de medidas não treinadas de desempenho cognitivo.”

    Ou seja, o grupo que fez o treinamento utilizando o app Lumosity foi mais eficiente nessas tarefas do que o grupo que treinou com palavras-cruzadas. Perfeito! Finalmente temos uma desculpa para jogar? Calma lá.

    Problemas…

    O cenário descrito até aqui aparentemente torna muito tentadora a afirmação de que os jogos da Lumosity melhoram a cognição dos usuários:

    1) Cientistas atestam a eficácia do produto.

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    2) Há um artigo, revisado pelos pares e publicado em uma revista científica que é bem conhecida no meio acadêmico.

    3) Há milhões de pessoas que utilizam o aplicativo e atestam sua eficácia.

    4) Diversos portais de tecnologia, inclusive brasileiros, indicam e recomendam o app.

    Mas esse conjunto de características não deveria ser encarado como prova definitiva. Nem para a eficácia de medicamentos milagrosos, nem para qualquer outra alegação fantástica.

    Não precisamos ser neurocientistas para perceber falhas graves no estudo, mas o treinamento no método científico se mostra mais uma vez útil fora do contexto acadêmico: avaliar se um aplicativo entrega o que promete.

    Um fato que pode passar despercebido é a falta de um grupo controle muito importante no estudo: o de pessoas que não tiveram treinamento nenhum, nem com os jogos da Lumosity nem com palavras-cruzadas, mas que também pudessem fazer a bateria dos testes finais. Esse grupo poderia se sair tão bem quanto o grupo que treinou com palavras-cruzadas, por exemplo.

    Com isso, a única conclusão real possível ficaria ainda mais óbvia: treinar palavras-cruzadas para testes que exigem rapidez, cálculo matemático e matrizes progressivas não melhora seu desempenho nessas atividades. Além disso, outros grupos de controle poderiam ser utilizados: pessoas utilizando um aplicativo similar ao da Lumosity, ou mesmo um formado por jogadores de Super Mario.

    Pasmem ou não, os jogos da Lumosity envolvem principalmente as funções de:

    1. Memória

    2. Raciocínio gramatical

    3. Raciocínio aritmético

    4. Matrizes progressivas

    5. Testes Go/No-Go

    6. Testes de dois alvos

    Sim, são as mesmas avaliadas nos testes cognitivos realizado após o treinamento.

    Ou seja, os autores concluíram que treinar a memória, raciocínio gramatical, raciocínio aritmético, matrizes progressivas, testes Go/No-Go e testes de dois alvos deixam as pessoas mais preparadas para fazer testes de memória, de raciocínio gramatical e aritmético, matrizes progressivas, testes Go/No-Go e testes de dois alvos! Isso quando comparado contra pessoas que treinaram palavras-cruzada!

    Seria o equivalente a comparar o desempenho, numa prova de matemática, de pessoas que estudaram português e de pessoas que estudaram matemática. Ou de pessoas que treinaram futebol contra pessoas que treinaram tiro ao alvo, num campeonato de tiro ao alvo.

    A ciência é linda e ela responde exatamente o que você pergunta. A questão é elaborar a pergunta certa, utilizar os métodos adequados e compreender o que os resultados, de fato, mostram.

    A pergunta na cabeça dos autores foi: nosso aplicativo é capaz de realizar transferência de treinamento?

    Mas a pergunta a que responderam com o estudo foi: treinar uma coisa qualquer coisa melhora o desempenho exatamente nessa coisa qualquer? Pelo menos, foi o dinheiro da própria empresa que financiou o estudo.

    A ciência continua linda

    Um segundo grupo de cientistas também ficou intrigado com as conclusões do time da Lumosity e preparou outro estudo. Neste, bem parecido com o que foi descrito anteriormente, o Grupo 1 jogou Lumosity. Mas os autores, agora, não utilizaram palavras-cruzadas para treinar o Grupo 2. Na lista dos jogos utilizados podemos encontrar o Toy Puncher 3: The Punchening – algo como “Esmurrador de brinquedos 3: a Esmurrada”. A descrição do jogo é a seguinte:

    “A sala de brinquedos ganhou vida e esses brinquedos são tudo, menos fofinhos. Abra seu caminho através de bonecas demoníacas e ursinhos de pelúcia aterrorizantes, para escapar da sala de brinquedos dos horrores. Use as setas para navegar.”

    É, basicamente, um jogo que requer reação rápida e memória. Um pouco macabro…

    Nesse estudo, eles também tomaram o cuidado de incluir um Grupo 3 que não praticou com nenhum jogo. A avaliação, após o período de treinamento, também foi feita com jogos cognitivos. Conclusão? Os Grupos 1 e 2 melhoraram ao longo do tempo, e na mesma proporção. Além disso, o grupo que não jogou nada também melhorou nos testes cognitivos, ao fazê-los seguidas vezes.

    Isso significa que nem os jogos de treinamento cerebral, nem os videogames regulares tiveram impacto nas habilidades cognitivas avaliadas. Para estes testes. Para estas pessoas. Que eram jovens saudáveis, sem nenhum problema mental mais grave.

    Pergunta respondida com métodos mais eficazes. Conclusão não tão emocionante. Pelo menos, não para o time da Lumosity, que além disso sofreu com um processo.

    Medo

    Promover alegações falsas sobre um produto é contra a lei. A Federal Trade Commission (FTC) – uma agência de proteção ao consumidor do governo dos Estados Unidos – leva esse tipo de questão muito a sério. Em entrevista publicada no Washington Post, a Diretora do FTC, Jessica Rich, relata que acusou a Lumosity de se aproveitar do medo de declínio cognitivo ligado à idade, que os consumidores sentem, para sugerir que seus jogos poderiam evitar a perda de memória, demência e até a doença de Alzheimer.

    A diretora também entendeu que não havia evidências científicas suficientes que sustentassem tais alegações. Vale ressaltar que o artigo do time da Lumosity já tinha sido publicado nessa época.

    Como parte do acordo proposto com a FTC, a empresa se comprometeu a apresentar evidências científicas competentes e confiáveis antes de fazer novas alegações sobre a eficácia de seu produto. A Lumosity também pagou multa de 2 milhões de dólares.

    Segundo a FTC, a maior parte do dinheiro foi utilizada para reembolsar consumidores. Além disso, a empresa ainda teve que permitir o cancelamento das assinaturas vigentes, sem multas.

    Não conseguimos encontrar informações mais atuais sobre o caso, mas hoje o site da Lumosity ainda exibe mensagens de que seu produto melhora a memória, a atenção e a flexibilidade do cérebro do usuário. E em letras garrafais:

    You care about your brain. We do, too.
    (Você se preocupa com seu cérebro. E nós também).

    * Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia e pesquisador do Laboratório de Genética Bacteriana do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, além de coordenador nacional do Pint of Science no Brasil.

    Este artigo foi produzido e publicado originalmente na Revista Questão de Ciência 

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