Navegar é preciso
Um profissional, chamado de Navegador de Pacientes, é capaz de eliminar barreiras que às vezes emperram o andamento do tratamento do câncer
Imagine você descobrir que amanhã, se quiser viver, terá que cruzar o Atlântico em um barco. E não tem como adiar. Você não se sente capacitado, mas não tem escolha. Não sabe por onde começar, nem mesmo tem tempo de pensar. Como fica seu trabalho? Seus filhos? Seus outros planos? Um paciente recém-diagnosticado com câncer se sente assim: perdido, desorientado, cheio de incertezas, sem saída.
Cruzar o Atlântico amanhã sem experiência e com segurança vai requerer que você seja um tripulante em meio a uma equipe experiente, que já fez essa viagem muitas vezes, conhece as melhores rotas e os perigos, sabe bem a hora de içar velas e quando recolhê-las para esperar a tempestade passar…
Claro, você terá responsabilidades a bordo, mas com orientações contínuas. Parece melhor agora? Ah sim! Já ia me esquecendo… A viagem será paga por você e, portanto, não podemos exagerar no tamanho do barco, nem no número de tripulantes, somente o necessário e adequado para otimizar a segurança e a chance de sucesso.
Cuidar do câncer e de várias outras doenças complexas é assim. Requer um time de especialistas com vivências, organização, planos claros e bem comunicado. Quando o paciente chega aterrorizado, nós explicamos, apresentamos o plano, transmitimos segurança, esclarecemos os riscos, lembramos dos inúmeros sucessos. E convidamos o paciente a se integrar na equipe.
Sim, agora o “Dr. Você” é parte importante da equipe. “Dr. Você” precisa dizer tudo que sabe ao grupo, alertar sobre sinais e sintomas, estar atento aos eventos adversos, zelar pela sua segurança e de todos no barco, expor as suas preocupações. Nenhuma decisão é tomada sem o “Dr. Você” participar.
Há espaço inclusive para adequar a velocidade, o trajeto e suas preferências. Nada sobre você acontece sem você – afinal, a travessia do oceano só se justifica porque você precisa chegar lá.
A oncologia cresce em complexidade a cada dia: mais alternativas terapêuticas, mais detalhes, mais genômica, mais personalização. O tratamento é longo, com anos de idas e vindas a médicos e múltiplos profissionais. Aliás, há cada vez mais especialistas de diferentes origens na tripulação: os que fazem o diagnóstico, os que preparam para suportar o tratamento, os que tratam, os que controlam os sintomas da doença e dos eventos adversos, os que organizam a reabilitação física e mental, os que cuidam da nutrição ao longo da jornada, os que garantem a segurança de todos os medicamentos, os que acolhem os sentimentos nas horas difíceis, aqueles que ajudam a voltar às atividades do cotidiano.
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Todos são excepcionais no que fazem, mas alguém precisa garantir a comunicação entre essa equipe e gerenciar o plano coletivo. Chamamos esse profissional de Navegador de Pacientes. É uma profissão que pode ser exercida por qualquer pessoa que se capacite, mas vemos, mais frequentemente, enfermeiros se especializando nesse tema pela capacidade de integrar conceitos clínicos de segurança, eficácia, eficiência, coordenação de pessoas e acolhimento. É um especialista na coordenação do cuidado, entre todos aqueles que mais vão ficar ao lado do “Dr. Você” na travessia, ajudando na transição entre as etapas e entre os especialistas.
A Navegação de Pacientes remove barreiras que atrapalhariam o plano de ação. O profissional coordena as consultas e exames com a pessoa certa, na hora certa, sem desperdício de tempo ou recursos. Há metas de tempo para iniciar o tratamento que aumentam as chances de sobrevida; há momentos importantes para se medir se o benefício esperado do tratamento está acontecendo; há pausas para discussões entre especialistas sobre situações não previstas. Navegar é preciso; a vida precisa.
A relevância é tanta que está em trâmite na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 4171/21, que cria o Programa Nacional de Navegação de Paciente, com o objetivo específico de treinar profissionais de saúde para orientar, tratar, acompanhar e monitorar pacientes com câncer de mama no Sistema Único de Saúde (SUS).
Em 2005, o National Cancer Institute dos Estados Unidos investiu 25 milhões de dólares para implantar um Programa de Navegação de pacientes oncológicos. Desde então, o Medicare e Medicaid, o Affordable Care Act e o Colégio Americano de Cirurgiões recomendam a navegação desses pacientes. O Programa Nacional de Acreditação de Centros de Referência em Câncer de Mama dos Estados Unidos exige a navegação de pacientes para emitir certificado no nível de excelência.
Os estudos reportam que pacientes navegados iniciaram o tratamento mais rápido, aderiram mais ao plano de tratamento, passaram menos tempo internados, fizeram menos à emergência e, por fim, relataram mais bem-estar, equilíbrio emocional e satisfação com o cuidado.
Mais chance de sucesso com menos esforço e sofrimento do paciente. Lembra do custo? Ao evitar que o paciente busque descobrir sozinho os caminhos do seu cuidado, a navegação evita redundância de consultas, exames e procedimentos. Com isso, reduz os custos para quem paga a conta. Sem falar nos custos indiretos de não aderir ao plano de cuidado. A navegação no tratamento do câncer é a antítese do que dizia o poeta: navegar é preciso, viver é ainda mais preciso.