Hanseníase e as histórias de um Brasil que está na Idade Média
Conhecida antigamente como lepra, a doença ainda é bastante comum no país, apesar de estar praticamente erradicada no resto do mundo
Vamos esquecer, por cinco minutinhos, os escândalos de corrupção, o 7 a 1 e a epidemia de zika. Existe outra vergonha nacional muito importante que é ignorada por governo, órgãos de saúde e população: a hanseníase. Você sabia que o Brasil é um dos únicos países do mundo que ainda registra casos dessa doença? Nós só ficamos atrás da Índia num inglório ranking mundial e respondemos por 90% das ocorrências dela no continente americano. Por ano, 27 mil indivíduos recebem o diagnóstico por aqui. Roraima, Pará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Tocantins são os estados com as estatísticas mais graves.
A hanseníase é causada por uma bactéria chamada Mycobacterium leprae, transmitida de um indivíduo para outro por meio de gotículas de saliva, que entram pela boca e pelo nariz. O micro-organismo se instala nos nervos periféricos do corpo, bem próximo à pele, e fica ali durante anos, sem dar sintomas. Ele demora muito tempo para se reproduzir: a título de comparação, o bicho leva 15 dias para dar origem a um novo bacilo, enquanto a bactéria da tuberculose, por exemplo, se replica a cada 24 horas. Mas chega um momento em que sua presença na região diminui a sensibilidade e desemboca em sérias lesões.
Acontece que cerca de 90% das pessoas possuem defesa natural contra o agente infeccioso. Mas há 10% que estão vulneráveis a ele e podem vir a desenvolver o problema. Outro dado que mostra a perplexidade do quadro brasileiro: o diagnóstico da condição é fácil, feito no consultório do médico, sem necessidade de exames mais complexos. O tratamento, por sua vez, é simples e consiste no uso de dois ou três antibióticos por alguns meses. Depois desse tempo, a bactéria acaba extirpada do organismo e a cura está garantida.
Em pleno século 21, a hanseníase deveria estar restrita aos livros de História. Há relatos dela em tratados médicos indianos no século 6 a.C. A Bíblia está lotada de referências ao termo “lepra”, apesar de antigamente existir muita confusão entre diversas manifestações dermatológicas. Veja um trecho de uma passagem do Novo Testamento:
“E aproximou-se dele [Jesus] um leproso, que, rogando-lhe, e pondo-se de joelhos diante dele, lhe dizia: ‘Se queres, bem podes limpar-me’. E Jesus, movido de compaixão, estendeu a mão, tocou-o, e disse-lhe: ‘Quero, sê limpo’. E, tendo ele dito isto, logo a lepra desapareceu e ficou limpo” (Evangelho de Marcos).
Durante toda a Idade Média, os pacientes com hanseníase eram obrigados a viverem isolados no meio do mato ou em leprosários e lazaretos — instituições tenebrosas que continuaram existindo no Brasil até 1900 e pouco, onde uma lei derrubada apenas em 1962 permitia “capturar” leprosos. No período medieval, nações europeias exigiam que todos os doentes usassem vestes características e balançassem sinos para alertar os outros de que estavam chegando às cidades.
Segundo pesquisas recentes, a hanseníase surgiu na África ou na Ásia e se espalhou para a Europa a partir das conquistas do imperador Alexandre, o Grande, e das Cruzadas católicas em Jerusalém. Nas Américas, a suspeita é que a enfermidade foi importada por meio do tráfico de escravos vindos do continente africano.
A dermatologista Letícia Maria Edit, de Porto Alegre, publicou um artigo em que rememora episódios da hanseníase no Brasil. Durante vários séculos, os portadores da doença foram tratados com extremo preconceito por aqui. Eles eram proibidos de comer, dormir ou casar com pessoas saudáveis, não podiam tocar em comidas nos mercados e nem entrar em algumas cidades, como São Paulo. “Os filhos dos leprosos não podiam ser batizados como as outras crianças pelo risco de poluírem as águas da pia batismal”, escreve.
No texto de Letícia, um episódio com hansenianos brasileiros chama atenção pela similaridade com The Walking Dead, série norte-americana de zumbis produzida pelo canal de televisão AMC. Nos idos de 1800, uma lenda dizia que o doente ficaria curado da doença se fosse capaz de infectar outras sete pessoas. Na tentativa de se livrar da encrenca, um grupo de leprosos resolveu invadir uma cidade no norte do estado de São Paulo (não se sabe qual município ao certo) e atacou os moradores que, assustados, responderam com armas e porretes. Aqueles que conseguiram fugir saíram correndo por uma estrada e encontraram uma criança, que foi agredida a dentadas até sangrar.
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Infelizmente, desse episódio bárbaro para os dias de hoje o cenário pouco mudou. O preconceito é tão grande que preferimos esquecer e ignorar a existência da doença e dos indivíduos acometidos por ela. A troca de nome de lepra para hanseníase parece ter mais confundido do que ajudado a aplacar a intolerância. Não existem grandes campanhas de conscientização. Sem contar o fato de que os médicos são formados nas nossas universidades sem terem nenhuma aula sobre o assunto. Enfim, uma série de defeitos institucionais levam ao descontrole de um problema que, como já dissemos, é de fácil diagnóstico e tratamento. Eu conversei brevemente com dermatologista Marco Andrey Cipriani, presidente da Sociedade Brasileira de Hansenologia, que informou os principais sintomas da condição:
“Nas formas iniciais, a hanseníase se manifesta por anos através de dormências, cãibras e formigamentos em áreas definidas do corpo. Esses sinais ficam mais comuns nos meses frios do ano. Depois, surgem lesões de pele esbranquiçadas e avermelhadas, ou nódulos espalhados pelo corpo, na face e nas orelhas. Todas essas lesões vêm acompanhadas de alterações de sensibilidade. Um bom teste é tocar com a mão ou com algum objeto no local machucado e, depois, numa região próxima. Se você sentir diferença no tato, é importantíssimo procurar o médico o quanto antes”.
Precisamos falar mais da hanseníase. Até para que ela deixe de ser uma de nossas grandes (e anônimas) vergonhas nacionais.
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