A negação do racismo no Brasil
Séculos de história e episódios recentes demonstram a profunda discriminação que opera na sociedade. Reconhecer o racismo é o primeiro passo para superá-lo
De acordo com o Vocabulário de Psicanálise, de Jean Laplanche e J.B. Pontalis, negação é um mecanismo de defesa que diz respeito ao “processo pelo qual o indivíduo, embora formulando um dos seus desejos, pensamentos e sentimentos, até aí recalcados, continua a defender-se deles negando que lhe pertençam”. A partir desse conceito, faremos uma reflexão sobre como se estrutura a resistência em assumir a existência de práticas racistas em nosso país, mesmo após mais de três séculos de escravidão e tantas evidências contrárias ao longo de 2020.
No campo jurídico, a lei nº 7.716/89 criminaliza as condutas racistas. Ainda assim, as marcas do racismo permanecem visíveis. O Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil, publicado em 2010 pelo professor Marcelo Paixão, comprova, a partir de dados estatísticos, que o mito da democracia racial está longe de ser verdade.
O desconhecimento da nossa história é um dos responsáveis pela negação de algo tão evidente. Por um lado, o fato de não termos em nossa história uma política de apartheid oficial como os Estados Unidos e a África do Sul cria a ilusão de que o nosso racismo teve uma forma mais branda, sobretudo quando se pensa a miscigenação como uma das maiores provas da suposta harmonia racial.
Por outro lado, é importante trazer à luz episódios da história como a do movimento eugenista brasileiro que, no Congresso Universal das Raças realizado em 1911 em Londres, propôs que, dentro de um século, se fossem estimuladas as correntes de imigração europeia e a miscigenação para eliminar os traços negros e indígenas da população. Sim, o embranquecimento através das gerações, fruto desse discurso de miscigenação eugenista, chegou a ser uma política de Estado.
Voltando ao tempo presente, o ano de 2020 foi marcado por eventos que trouxeram a pauta racial às mídias. O caso da estudante Nedye Fatou Ndiaye em um colégio particular no Rio de Janeiro, o assassinato de João Alberto Silveira Freitas às vésperas da comemoração do Dia da Consciência Negra em Porto Alegre, a discriminação nos campos de futebol e os ataques orquestrados contra artistas negros nas redes sociais dão provas de que o racismo à brasileira ultimamente tem sido bem menos cordial.
Assim como na psicoterapia ter escuta para a história que o paciente traz é uma das chaves para a mudança de narrativa e o alívio dos sintomas, é urgente que reconheçamos como a negação do racismo é um mecanismo de defesa para que o problema permaneça inalterado, operando na preservação de uma suposta autoimagem nacional de que somos uma democracia racial. Nega-se uma realidade com a qual não se tem recursos emocionais para lidar.
Mas negar o racismo é uma forma de mantê-lo vivo e impedir que as reparações aos seus danos sejam feitas. Bom seria se, por via do conhecimento da história sem omissão e distorção dos fatos, pudéssemos avançar enquanto sociedade e sermos verdadeiramente um país que valoriza a diversidade racial.