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Tá na internet, tá na TV, tá nos livros... tá no nosso dia a dia. O jornalista André Bernardo mostra como fenômenos culturais e sociais mexem com a saúde — e vice-versa.
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A Psicologia Preta e a saúde mental dos negros no Brasil

No mês da Consciência Negra, converso com um expoente brasileiro de um ramo da psicologia que busca olhar e dar apoio aos cidadãos negros

Por André Bernardo
25 nov 2019, 17h39

Foi em 2015, quando começou a trabalhar na Casa Viva Bangu, um espaço de acolhimento da prefeitura do Rio de Janeiro para jovens em situação de rua e dependência química, que a Psicologia Preta ganhou força na vida do psicólogo Lucas Veiga, de 29 anos.

Apesar de ser mestre em psicologia pela Universidade Federal Fluminense, onde se graduou em 2013, ele descobriu que, na prática, sua formação acadêmica não era suficiente para acolher, cuidar ou entender as questões trazidas por muitos dos adolescentes pretos e pardos que frequentavam a casa. “As graduações em psicologia no Brasil são muito embranquecidas. A maioria dos autores estudados é de homens brancos europeus. São raras as universidades que estudam autores negros”, constata.

Em conversa com outros profissionais negros do campo da saúde mental, Lucas se perguntava como poderia desenvolver um trabalho para atender às demandas da Casa Viva Bangu, onde atuou por dois anos – como psicólogo e coordenador. Foi quando deparou com a Black Psychology (Psicologia Preta), ramo da psicologia que surgiu nos Estados Unidos durante os anos 1960.

Em plena época de luta por direitos civis, intelectuais negros como os psicólogos Wade Nobles, da Universidade de Stanford, e Na’im Akbar, da Universidade de Michigan, começaram a produzir conhecimento voltado para a subjetividade negra. “A Psicologia Preta oferece uma série de ferramentas que, em meio às violências do racismo, ajuda a promover saúde mental para a população negra”, resume Veiga.

Lucas pesquisou, também, a obra de autoras brasileiras como as psicanalistas Virgínia Leone Bicudo (1910-2003) e Neusa Santos Souza (1958-2008), pioneiras nos estudos raciais no Brasil. Socióloga, Virgínia foi a primeira acadêmica a escrever uma dissertação de mestrado sobre as relações raciais no país, Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo, em 1945. Já Neusa tornou-se famosa pela publicação do livro Tornar-se Negro – As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social (1983).

Foi assim que, aliando a leitura de autores negros e o estudo sobre questões raciais à sua experiência clínica, Lucas Veiga montou um curso, Introdução à Psicologia Preta. Só este ano, já excursionou por seis estados, como Bahia, Pernambuco e Espírito Santo, onde palestrou para mais de 500 pessoas – 90% delas psicólogos, psicólogas e estudantes de psicologia, negros e negras. Por vezes, a procura era tão grande que teve que abrir turmas extras.

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Qual a razão disso? O tema ainda é pouco difundido nas universidades. “Um dos objetivos do curso é pensar o impacto do racismo na subjetividade negra. Mais que isso: pensar formas de promoção de saúde mental”, explica.

Além das palestras que dá pelo país, Lucas atende pacientes em seu consultório, no Rio. Muitos deles afirmam que, no passado, até que tentaram fazer terapia com psicólogos brancos, mas não conseguiram. Por vezes, tiveram que ouvir frases do tipo: “Não existe racismo no Brasil”, “Sofrimento não tem cor” ou “Você não está exagerando?”. “Essas falas apenas deslegitimam o sofrimento do paciente”, afirma.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 54% da população brasileira é formada por negros. Na ponta do lápis, dá 113 milhões de pessoas. Ainda assim, todos os espaços de poder na sociedade brasileira são ocupados por pessoas brancas, como as assembleias legislativas, o congresso nacional, o corpo docente das universidades…

“A pessoa negra não se vê nos símbolos de poder, inteligência e beleza que, hegemonicamente, circulam pela sociedade. Um dos efeitos disso é entrar em um processo inconsciente de rejeição a si mesmo, seguido de um desejo de embranquecimento”, analisa Lucas.

O impacto do racismo na saúde mental

Quadros de ansiedade e depressão, explica Veiga, são comuns entre pessoas negras. Segundo estimativa da ONU, a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil. E, na maioria das vezes, esse homicídio é praticado pelo próprio Estado, por meio de operações policiais em comunidades carentes.

“É evidente que, para um jovem negro, viver num país racista como o nosso tem efeitos nocivos sobre sua saúde mental. O corpo do jovem negro é interpretado como uma ameaça pelas pessoas brancas e toda uma política de extermínio é delineada no país”, argumenta o psicólogo. Tudo isso conspira inclusive para um maior risco de suicídio. “Se o meu próprio corpo é lido como uma ameaça na sociedade, esse corpo se torna uma ameaça real a mim mesmo, que posso vir a ser assassinado a qualquer momento simplesmente por ser quem eu sou. Como se livrar de uma ameaça dessas? Para alguns jovens, tirando a própria vida”, lamenta.

De fato, números do Ministério da Saúde indicam que, em quatro anos, o percentual de suicídio entre jovens e adolescentes negros aumentou 12%. A cada dez jovens que se suicidaram no Brasil em 2016, o mais recente ano da pesquisa, seis eram negros. Entre as razões apontadas estão “rejeição”, “sentimento de inferioridade” e “de não pertencimento”.

Um dado triste é que Neusa Santos Souza, uma das pensadoras que inspiraram Veiga na criação de seu curso, também cometeu suicídio. No dia 20 de dezembro de 2008, aos 60 anos, ela se atirou da janela do apartamento onde morava, no Rio. Apenas sete meses antes, no dia 13 de maio, Neusa publicara um artigo, Contra o racismo: com muito orgulho e amor, no jornal Correio da Baixada.

Nele, a psicanalista se perguntava: “Abolição da escravatura quer dizer libertação. Mas será que acabamos mesmo com a injustiça, com a humilhação e com o desrespeito com que o conjunto da sociedade brasileira ainda nos trata? Será que acabamos com a falta de amor-próprio que nos foi transmitido desde muito cedo nas nossas vidas? Será que já nos libertamos do sentimento de que somos menores, cidadãos de segunda categoria? Será que gostamos mesmo da nossa pele, do nosso cabelo, do nosso nariz, da nossa boca, do nosso corpo, do nosso jeito de ser? Será que, nesses 120 de abolição, conquistamos o direito de entrar e sair dos lugares como qualquer cidadão digno que somos? Ou estamos quase sempre preocupados com o olhar de desconfiança e reprovação que vem dos outros?”.

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Por essas e outras, Lucas procura transformar seu consultório e, por extensão, os cursos que dá pelo Brasil afora em um “espaço de aquilombamento”. “Quero criar um lugar de cuidado e proteção onde os pacientes possam se sentir acolhidos sem precisar ser interrogados por seus terapeutas se o que estão dizendo é exagero ou invenção”, diz.

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