O que esperar de 2021? Psicólogos e líderes espirituais respondem
Amparados nas lições de 2020 e atentos ao mundo pós-pandemia, eles falam em livros (e ao colunista) sobre como pode ser o amanhã
Confinado no Convento Santo Alberto Magno, em São Paulo, Frei Betto passou boa parte de 2020 fazendo o que mais gosta: escrevendo. “Colocar no papel ou no computador ideias e sentimentos é profundamente terapêutico”, diz. Não é a primeira vez que o mineiro Carlos Alberto Libânio Christo, seu nome de batismo, recorre à escrita para não enlouquecer. Entre 1969 e 1973, durante o regime militar, ele passou por oito presídios. No período, reuniu material suficiente para publicar três livros: Cartas da Prisão (Companhia das Letras), Batismo de Sangue (clique para comprar) e Diário de Fernando – Nos Cárceres da Ditadura Militar Brasileira (Rocco). “A diferença é que, na pandemia, a chave fica do lado de dentro da cela”, compara.
Seu 69º título, Diário de Quarentena – 90 Dias em Fragmentos Evocativos (Rocco), reúne uma série de ensaios, memórias e insights, do dia 18 de março de 2020, o primeiro da quarentena, ao dia 16 de junho, o nonagésimo. “Quarentena vem de quarenta e o vocábulo não procede de prescrições médicas e sim de simbologia bíblica. Nas escrituras sagradas, 40 significa o tempo de Deus”, explica o frade dominicano no dia 18 de março.
“Ignoro se o legado da pandemia será um mundo melhor, menos competitivo e desigual, mais solidário e justo. Tenho dúvidas”, confessa, desconfiado, no dia 26 de abril. “Ilude o paciente o terapeuta que lhe acena um futuro sem conflitos. A maturidade consiste não em tentar (em vão) evitar conflitos, mas, em saber lidar com eles”, filosofa em 17 de maio.
Frei Betto não foi o único a transformar suas reflexões durante a pandemia de Covid-19 em textos literários. No lugar de diário, o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral optou pelo formato epistolar. Em seu livro de estreia, Cartas de Um Terapeuta Para Seus Momentos de Crise (Planeta), apresenta 14 cartas supostamente escritas por sentimentos, como medo, culpa, raiva, tristeza e esperança, para os leitores. “2020 foi o ano mais tenso, inusitado e surpreendente de nossas vidas. Nunca fomos obrigados a nos transformar tanto, tantas vezes e em tão pouco tempo”, avalia o terapeuta familiar.
“Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”
A maior lição aprendida, segundo Alexandre, foi a resiliência. Herdada da física, o termo se refere à propriedade que alguns corpos apresentam de retornar à forma original depois de submetidos a uma deformação elástica. Em linguagem figurada, significa a capacidade que alguns de nós têm de “levantar, sacodir a poeira e dar a volta por cima”, como diria o compositor paulista Paulo Vanzolini (1924-2013). “Terminamos 2020 maiores do que começamos. Hoje, merecemos olhar no espelho e ver que somos mais flexíveis e adaptativos do que éramos antes. Conseguimos suportar situações muito mais adversas do que poderíamos esperar”, analisa.
Não faltam adjetivos, aliás, para descrever 2020. “Tenso”, “inusitado” e “surpreendente” foram alguns dos escolhidos por Alexandre. O pastor evangélico Henrique Vieira, autor de O Amor Como Revolução (Objetiva), acrescenta outro: “difícil”. Durante a quarentena, ele e Marcelo Barros, monge beneditino, trocaram e-mails, abordando temas existenciais, como fé, tolerância e amizade, que deram origem ao livro O Monge e O Pastor – Diálogos Para Um Mundo Melhor (Companhia das Letras).
Mas, com um saldo de 1,8 milhão de mortos pela Covid-19 – 193,8 mil só no Brasil –, dá para dizer que 2020 teve algo de bom? Para Henrique Vieira, o lado positivo do ano foi a força da luta antirracista tanto aqui quanto lá fora. “O grito do povo negro contra o racismo, o preconceito e a discriminação ganhou força. O povo negro sempre lutou e resistiu. Em 2020, mais do que nunca”.
Durante a pandemia, a psicanalista Regina Navarro Lins, autora de A Cama na Varanda (1997), O Livro do Amor (2012) e Novas Formas de Amar (2017), entre outros títulos sobre relacionamento amoroso e sexual, recebeu mensagens de homens e mulheres se queixando do isolamento social. Entre as reclamações mais comuns, reinava a dificuldade de suportar 24 horas por dia, sete dias por semana, o(a) parceiro(a) do lado.
“Em nossa cultura, os casamentos são regidos pelo amor romântico que prega a fusão, ou seja, os dois devem se transformar num só. Isso não existe, claro! E as frustrações são muitas”, avisa a terapeuta de casais, que acaba de lançar Amor na Vitrine – Um Olhar Sobre as Relações Amorosas Contemporâneas (Best-Seller). “O amor é um sentimento natural, mas o comportamento amoroso precisa ser aprendido. Para viver a dois sem tantas limitações, homens e mulheres precisam mudar sua maneira de ser e de pensar”, aconselha Regina, dando como exemplo o respeito à individualidade do outro.
Se, no campo amoroso, a quarentena provocou inquietude, no ecológico, entre outros, despertou consciência. É o que defende a psicanalista Maria Homem. Em seu novo livro, Lupa da Alma – Quarentena-Revelação (Todavia), ela desvela tudo aquilo que, ao longo de muito tempo, o homem tentou empurrar com a barriga ou jogar para debaixo do tapete.
Um exemplo? A maneira quase suicida de lidar com o planeta onde vivemos. “Quem sabe 2020 nos ajude a aceitar o fato de que não, não somos os reis da criação. Somos uma fagulha de carbono pensante”, define. “Ampliar a consciência de nosso ínfimo, porém, raro lugar no universo é tarefa necessária e, por que não dizer, desafiadora”.
“Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia”
Findo 2020, o que esperar de 2021? A líder budista Monja Coen, autora de Ponto de Virada – O Que Faz Uma Pessoa Mudar? (Academia), avisa: 2021 será parecido com 2022. Mas não será igual. “Nada jamais se repete. A Terra gira em torno de si mesma e em torno do Sol. Giramos juntos e, a cada instante, nos transformamos. Nunca voltaremos a ser como éramos antes”, filosofa Cláudia Dias Baptista de Souza, a Monja Coen.
Na opinião de Alexandre Amaral, 2021 será ainda mais desafiador do que 2020. Afinal, até todo mundo estar devidamente imunizado contra a Covid-19, precisaremos cumprir todas as medidas de distanciamento social, como usar máscaras e evitar aglomerações. Uma dica? “Esvaziar a alma de sentimentos ruins”, recomenda o psicólogo. “Raiva e tristeza são toxinas que adoecem o ser humano”.
Indagado se está otimista quanto ao futuro, o pastor Henrique Vieira cita o dramaturgo pernambucano Ariano Suassuna (1927-2014). O autor de O Auto da Compadecida (1955) costumava dizer que “o otimista é um tolo e o pessimista, um chato. Bom mesmo é ser um realista esperançoso”. “A realidade é dura, os tempos são difíceis, mas acredito no amor, na bondade e na justiça social”, completa o pastor. “2021 será um ano de reconstrução”.
A exemplo de Suassuna, Maria Homem também se considera uma pessoa realista. Para começo de conversa, a psicanalista não acredita que, quando tudo isso passar, nos tornaremos, como num passe de mágica, seres humanos mais evoluídos e inteligentes. Ou, quem sabe, mais aptos a avançar como um coletivo global em relações menos destrutivas uns com os outros e com o meio ambiente.
“Magia não existe. Tudo indica que os fortes sairão da crise mais fortes e os fracos, mais fracos”, pondera. “Enfim, os dados estão lançados. E, quem sabe, saberemos tirar as lições da experiência e aprofundar os debates, de forma mais honesta e não paronoide, sem colocar toda a culpa no outro”.
No 44º dia do seu Diário de Quarentena, Frei Betto aconselha o leitor a “guardar o pessimismo para dias melhores”. O que isso significa? Manter sempre a esperança. Não a esperança do verbo esperar. Mas, a esperança do verbo ‘esperançar’. O ensinamento é do educador pernambucano Paulo Freire (1921-1997). “Esperar é ficar na expectativa de que algo vai acontecer. Já esperançar é fazer algo acontecer”, explica o frade dominicano. Feliz 2021 para todos!