Livro infantil ajuda crianças e famílias a prevenir situações de abuso
Obra de escritora brasileira fica em evidência diante de novas ações de combate à violência contra crianças, problema que se agravou com a pandemia
Oito anos. Esse foi o tempo que a escritora Andrea Viviana Taubman levou para colocar o ponto final em um livro delicado de 40 páginas. Até chegar à versão definitiva de Não Me Toca, Seu Boboca! (clique para comprar), sua 12ª obra voltada ao público infantil, ela consultou especialistas em abuso infantil, reescreveu algumas frases mais de 30 vezes e submeteu a primeira versão a uma instituição de proteção a infância e adolescência.
Publicado em 2017 pela Editora Aletria, o livro conta a história de Ritoca, uma coelhinha falante que, certo dia, aceita, junto a alguns amigos, o convite de um tiozão da vizinhança para ir a sua casa “lanchar, brincar e assistir televisão”. O sujeito, porém, impõe uma condição para lá de estranha: não contar nada para ninguém! Por pouco, muito pouco mesmo, Ritoca não caiu em uma cilada tramada por um abusador.
“Foi desafiador falar sobre algo repugnante de forma lúdica”, afirma a escritora de 55 anos que nasceu na Argentina e veio morar no Brasil aos 7. “Queria despertar nas crianças um alerta para reconhecer uma situação de potencial perigo sem assustá-las e, ao mesmo tempo, dar oportunidade a famílias e escolas de abrirem o diálogo de forma leve sobre um assunto que gera dificuldades para ser abordado”, relata.
A ideia de escrever Não Me Toca, Seu Boboca! surgiu em 2010. Mas, bem antes disso, Andrea já sentia vontade de fazer algo que pudesse ajudar na prevenção do abuso infantil. Ela ainda não trabalhava como autora de livros infantis, tampouco tinha publicado o primeiro deles, O Menino que Tinha Medo de Errar (2009), quando atuou como voluntária em um abrigo de Teresópolis, região serrana do Rio, que atendia crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos e abuso sexual.
Entre 2000 e 2009, quando trabalhou ali, Andrea presenciou cenas fortíssimas de bebês, crianças e adolescentes chegando em condições físicas e psicológicas lastimáveis, com o corpo repleto de feridas e a cabeça infestada de piolhos. “Era duro olhar para aqueles olhos desesperançados, de infância roubada. Sou mãe de dois rapazes que, à época, eram crianças e tinha pavor que isso pudesse acontecer com meus filhos. Nunca aceitei que essa violência pudesse acontecer com qualquer criança”, diz.
Andrea conta que, felizmente, nunca foi vítima de nenhum “Tio Pipoca”. Em compensação, conheceu várias “Ritocas”. Uma delas, aliás, tem mais de 80 anos! E, quando terminou de ler o livro, tomou coragem de contar para a sobrinha o abuso que sofreu quando ainda era mocinha.
“Desde que o livro saiu, recebo relatos de adultos e crianças, tanto de vítimas quanto de crianças que, alertadas pela narrativa, foram capazes de identificar e denunciar situações que culminariam na violência sexual”, revela. “Muitas pessoas me escrevem agradecendo pelo livro, ou porque encontraram uma forma de falar sobre o tema com suas crianças ou porque conseguiram se sentir acolhidas e entenderam que a culpa nunca tinha sido delas”, completa.
Logo no começo Andrea decidiu que escreveria a história em primeira pessoa, narrada por uma criança, com versos e rimas, para dar leveza ao texto. Outra resolução, tomada em parceria com a ilustradora carioca Thais Linhares, foi representar as personagens do livro como animais humanizados. “A caracterização física poderia levar as crianças a fazerem associações imagéticas com pessoas reais”, explica.
No entanto, ao longo do caminho, Andrea precisou fazer alguns ajustes. Na primeira versão, por exemplo, a “heroína” não era Ritoca e, sim, sua mãe. “Há mães abusadoras. E há mães que, por dependência financeira, são coniventes com o abusador. Como poderia ser a mãe a heroína da história se ela poderia estar entre os algozes?”, questiona.
Embora as estatísticas apontem que mais de 70% dos abusadores são pessoas que convivem com a vítima, como pais, tios e avós, Andrea preferiu fazer de um vizinho, “sempre muito gentil e sorridente”, o vilão da história. “Esse crime é o mais subnotificado que existe. Acontece com muito mais frequência do que os números e as aparências demonstram”, lamenta.
Ciente da responsabilidade que seria abordar o tema em um livro infantil, Andrea mostrou a primeira versão dele a alguns amigos: uns advogados, outros psicólogos. Um deles gostou do que leu, mas admitiu não ter “capacidade técnica” para avaliar o conteúdo. Foi quando sugeriu que Andrea enviasse uma cópia para a Childhood Brasil.
A instituição de proteção a infância e adolescência, criada pela Rainha Silvia da Suécia em 1999, elogiou a iniciativa, mas sugeriu que a autora reescrevesse alguns trechos da obra. “Ainda há muito preconceito, tabu e vergonha para falar sobre sexualidade. Este tipo de material, pensado para adultos e crianças dialogarem entre si e aprenderem juntos, são fundamentais para romper esse ciclo. Acho válida a iniciativa porque a linguagem lúdica possibilita tanto à criança acessá-lo individualmente quanto recorrendo à mediação de um adulto na contação e na interpretação”, analisa Itamar Gonçalves, gerente de advocacy da Childhood Brasil.
Quebrando a cabeça para trocar algumas frases e ser mais precisa, sensível e didática, Andrea chegou à conclusão de que “o abuso sexual é praticado, na maioria dos casos, por quem deveria cuidar da vítima. Então, o desafio era falar do ‘como acontece’ em vez de falar sobre ‘o que acontece’.” Com o livro finalmente pronto, a escritora não parou mais: conversou com psicólogas, assistiu a seminários e deu palestras sobre o tema — numa delas, dividiu o palco com a nadadora Joanna Maranhão, vítima de abuso na infância.
“A violência sexual contra crianças e adolescentes é um crime sem recortes. Qualquer pessoa pode ser o criminoso, qualquer criança e adolescente pode ser a vítima”, analisa Andrea. O representante da Childhood Brasil concorda em gênero, número e grau. “Quem comete violência sexual não tem uma marca na testa dizendo que é um abusador sexual. É um cidadão acima de qualquer suspeita, com boa relação social na comunidade”, pontua.
Por isso é essencial conversar com os pequenos sobre as partes íntimas do corpo, explicar o que são toques invasivos, dar dicas sobre como evitar situações de risco etc. “A prevenção é a melhor opção. E, neste caso, prevenir significa que a criança precisa saber quando está sendo vítima de abuso. Quanto aos adultos, eles não podem ficar omissos. Caso uma criança peça ajuda ou revele a situação de violência, é importante escutá-la e denunciar o abusador”, esclarece Gonçalves.
Em março, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) alertou as autoridades para o risco de aumento no número de casos de maus-tratos e abuso sexual de crianças e adolescentes durante a pandemia de Covid-19. Dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, divulgados em maio, confirmaram o receio. Só em abril, o Disque 100, principal canal de denúncia de violações de direitos humanos no Brasil, recebeu 19,6 mil denúncias de violência sexual contra crianças — um aumento de 47% em relação ao mesmo período no ano passado.
“Sem a denúncia de suspeita de violência doméstica contra crianças e adolescentes, os serviços de proteção não podem checar e investigar se procede ou não o problema. Por isso, caso presencie ou escute uma criança solicitando ajuda, ligue para a Polícia Militar, no número 190, imediatamente. Já para os casos de suspeita de violência, a denúncia poderá ser feita pelo Disque 100 ou 180”, orienta o gerente da Childhood Brasil.