Cuidar da saúde bucal ajuda a proteger o cérebro
Apuramos esse curioso elo entre a higiene dos dentes e a saúde dos neurônios
Sabe o jogo de videogame Pacman? Às vezes, dentro daquele cenário labiríntico, entramos em um beco para engolir as bolinhas e ficamos cercados de fantasmas. Aí já era. Imagine que algo parecido possa acontecer dentro da sua boca. Se você se descuida da higiene, principalmente após as refeições, seus dentes vão virar reféns de outro tipo de fantasma, as bactérias. Acontece que elas não causam só gengivite e periodontite, condições que começam silenciosas e chegam a desfalcar a arcada dentária. Podem assustar outros cantos do corpo, inclusive o cérebro.
Depois de tomar conta da boca e iniciar um processo que leva à corrosão dos tecidos que sustentam os dentes, esses micróbios conseguem acessar a corrente sanguínea. Daí ganham passe livre para zanzar pelo organismo. A novidade é que eles parecem se intrometer até na nossa cabeça. Em um experimento da Universidade Fudan, na China, os cientistas encontraram bactérias causadoras da periodontite na massa cinzenta de pessoas com Alzheimer.
Os bichinhos marcaram presença em quatro de dez cérebros de pacientes com demência, mas nenhum foi avistado nas dez amostras cerebrais de sujeitos sem o problema. O achado é um indicativo de que a má saúde bucal teria conexão, até mais direta, com o declínio cognitivo, especialmente entre os mais velhos.
Os detalhes da jornada bacteriana entre os dentes e a cachola ainda estão cercados de mistérios. “As bactérias da boca podem provocar doenças em várias partes do corpo, mas, no caso do cérebro, os estudos ainda não são conclusivos”, pondera o dentista Alexandre Bussab, diretor da Clínica Brasil Smiles, na capital paulista.
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O trabalho chinês também não elucida se a associação de uma coisa com a outra é fortuita. “É difícil estabelecer uma relação de causa e efeito, porque isso requer pesquisas mais longas e complexas”, analisa a periodontista Magda Feres, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Odontologia da Universidade Guarulhos, na Grande São Paulo. “Ainda assim, há hipóteses plausíveis para essa ligação.”
Um grupo da Universidade Duke, nos Estados Unidos, publicou uma revisão com base em 56 estudos – a primeira sobre o assunto – revelando que a frequência de periodontite é maior em pessoas com prejuízo cognitivo. O documento não crava o que leva ao quê, mas sugere um elo claro entre as duas condições.
A tal periodontite é um terror para a boca (e potencialmente para o cérebro) não só devido aos micróbios. “Trata-se de um processo inflamatório, desencadeado por bactérias, que destrói a estrutura que liga o dente à gengiva e ao tecido ósseo”, descreve Magda. O sistema imune, louco para aniquilar o inimigo, libera moléculas que fazem a boca padecer por tabela. “A inflamação exacerbada chega a promover a perda óssea ao redor dos dentes”, conta a periodontista Elaine Escobar, professora das Faculdades Metropolitanas Unidas, em São Paulo. E existem pistas de que inflamações desse tipo propiciam, ao longo dos anos, danos aos neurônios.
Falamos de problemas mais comuns com o envelhecimento, certo? Mas nem pense em alegar que a dentadura é um destino comum na maturidade. “Existe uma falsa noção de que o idoso vai acabar, naturalmente, perdendo os dentes. E é muito pelo contrário. Todo mundo nasceu para viver e morrer com eles”, declara Giuseppe Romito, professor de periodontia da Universidade de São Paulo. Conservar a dentição, aliás, é sinal de que o corpo irá enfrentar menos abalos em outras regiões – ora, a periodontite está ligada a uma lista de encrencas extrabucais (veja mais abaixo).
O fato é que as desordens da cavidade oral são mais incidentes com o soprar das velinhas, uma vez que as bactérias tendem a reinar mais facilmente nessa fase. Em geral, o corpo do idoso sofre uma inflamação branda e sistêmica, muitas vezes sem sintomas. É o que os especialistas chamam de inflammaging (palavra em inglês que mescla “inflamação” e “envelhecer”). Esse processo, junto a uma baixa natural na imunidade, torna o indivíduo mais suscetível a infecções, entre elas as que acometem os arredores da gengiva. Se houver uma rotina precária de escovação, portanto, os dentes estão com os dias contados.
E aí sobraria até para o cérebro. A inflamação sistêmica, estimulada pela confusão nas bandas da boca, pode danificar a barreira hematoencefálica – estrutura que blinda o sistema nervoso central. Isso significa que moléculas perigosas para os neurônios e até mesmo bactérias conseguiriam penetrar nessa área nobre do organismo e impor más consequências à cuca.
É um elo inusitado e que pede novas pesquisas e descobertas. “No momento, não se pode afirmar com certeza que exista essa relação”, diz o médico Norberto Frota, da Academia Brasileira de Neurologia. “Não dá para atestá-la, mas, se já existem indícios a respeito, precisamos tratar do assunto como uma possibilidade a ser evitada”, opina Romito.
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Lembre-se do checkup bucal
Mesmo que esteja aparentemente tudo bem com a boca, não dá para deixar de ir ao dentista periodicamente – no mínimo uma vez por ano. E, se houver sangramento constante na gengiva, incômodos ou sensação de amolecimento nos dentes, convém antecipar a visita. Não se esqueça: a gengivite e sua fase mais avançada, a periodontite, costumam se instalar sem dores.
Se não foi possível prevenir, a meta é flagrar quanto antes para impedir seus estragos. Até porque existe tratamento, e ele vem evoluindo. “O uso de antibióticos juntamente com raspagem dos dentes tem sido muito eficaz na redução das bactérias agressivas”, relata Magda.
Essa é uma forma de salvar não só a pátria bucal como, quem sabe, defender a cabeça de males que sabotam a memória e outras funções cognitivas. Ou, se voltássemos a brincar de Pacman, prezar pelos dentes significa escapar com sucesso dos fantasminhas e passar de fase com um sorriso aberto.
Não tem idade para deixar de se cuidar
Empregar a escova e o fio dental corretamente e evitar fatores de risco, como o cigarro, é essencial para prevenir a periodontite, cuja incidência aumenta com o avançar dos anos. Entre os mais velhos, a faxina bucal merece atenção extra. É que, com a idade, podem surgir dificuldades na higienização por deficiência motora. Então, indicamos o uso de escovas elétricas, interdentais e enxaguatórios“, explica o dentista Sigmar de Mello Rode, professor da Universidade Estadual Paulista, em São José dos Campos. “Em alguns casos, o idoso precisa de auxílio”, completa.
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Intercâmbio nocivo
Conheça as hipóteses que buscam explicar como a periodontite azucrinaria a cabeça
1. Se a higiene bucal é ignorada, bactérias ruins se multiplicam e agridem a gengiva. Com o tempo, passam a atacar também o periodonto, tecido que dá suporte aos dentes.
2. Numa reação de defesa, o organismo dispara um processo inflamatório. Se nada for feito, o problema se alastra e pode levar à perda dos dentes.
3. O drama é que as bactérias nocivas podem cair no sangue. Uma das teorias diz que, a partir daí, algumas delas viajariam até o cérebro.
4. Além de uma possível participação das bactérias, moléculas inflamatórias liberadas na boca teriam repercussão sistêmica, incentivando danos aos neurônios.
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Conexões extrabucais
A periodontite repercute em regiões bem distantes dos dentes. Listamos as doenças associadas a ela
Problemas cardiovasculares
Algumas bactérias e o processo inflamatório despertado por elas incentivam a formação de placas que entopem as artérias.
Parto prematuro
Moléculas inflamatórias liberadas na boca caem no sangue e podem induzir a saída precoce do bebê.
Em indivíduos com a imunidade comprometida, os bichinhos podem rumar até os pulmões e favorecer o acúmulo de pus.
Gastrite
A bactéria que causa gastrite, a H. pylori, não raro se instala na boca e, quando acha espaço, vai para o estômago criar problemas.
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Diabete
As bactérias bucais pioram a inflamação sistêmica, condição que atrapalha o trabalho da insulina, elevando o risco de o diabete se instalar.
Artrite
Substâncias de ação inflamatória que surgem na periodontite chegam a desencadear ou agravar o inchaço e a dor nas juntas.
A conexão entre boca e nariz facilita a viagem dos micróbios. Uma vez nos seios nasais, eles irritam a mucosa e instigam a formação de pus.