Ainda que a videira, a uva e o vinho sejam presenças milenares na história e no imaginário da humanidade, foi por volta de 1532 que o fruto começou a ser cultivado no Brasil. Quase cinco séculos atrás, colonizadores portugueses liderados por um tal de Brás Cubas começaram a plantar exemplares vindos do Velho Mundo na região onde hoje fica Cubatão, no litoral de São Paulo.
Esse Brás Cubas não era o narrador-personagem do clássico de Machado de Assis escrito muito tempo depois, mas também deixou um legado. Fundou a cidade de Santos, inaugurou o primeiro hospital da região e introduziu as uvas no solo e na mesa da jovem nação. Nesses primórdios, porém, colher a fruta tinha uma única ambição: fazer vinho!
Pudera: a espécie pioneira por aqui, e ainda popular pelo mundo, a Vitis vinifera, não é das melhores para consumir in natura. Tem maior teor de açúcar (algo sob medida para a fermentação), casca grossa e sementes grandes demais.
Trazer a fruta e mesmo o vinho da Europa pra cá era um desafio. Meses dentro dos barcos, sujeitas a variações de temperatura e umidade e armazenadas em condições longe do ideal, a uva não resistia e a bebida virava vinagre.
Então por que não plantar nesta terra onde tudo que se planta dá? Era hora de tentar o cultivo no Brasil. “Só 20 anos depois da introdução da videira no país é que foi feito o primeiro vinho em solo nacional”, relata Patrícia Ritschel, pesquisadora da Embrapa Uva e Vinho, citando como referência o livro Uvas para o Brasil, de Inglês de Sousa.
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Apesar das origens no século 16 por obra dos portugueses, a viticultura só se consolidou no país no século 19, o mesmo que assistiu à publicação das Memórias Póstumas de Brás Cubas. E graças a imigrantes italianos, que se instalaram no Sul.
Hoje, porém, variedades da fruta prosperaram, o cultivo se disseminou para novas regiões e o objetivo não é só fazer vinho. As uvas ganharam fãs na feira, e o suco se popularizou.
Segundo o último panorama elaborado pela Embrapa, cerca de 1,5 milhão de toneladas do fruto são produzidas anualmente pelo Brasil. O destino da colheita varia conforme a safra, mas, em média, estima-se que metade das uvas seja destinada ao processamento, isto é, à fabricação de vinhos, sucos, geleias e outros derivados.
Embora o Rio Grande do Sul continue sendo com folga o líder do setor, com quase dois terços da área plantada no país, as videiras já são encontradas em pelo menos 18 unidades da federação, espalhadas em todas as regiões.
“Desde os anos 1970, a viticultura comercial deixou de se restringir a áreas de clima subtropical e temperado, como o Sul, e foi se expandindo para os trópicos, inicialmente no Nordeste, no Vale do São Francisco e no norte de Minas”, conta Patrícia.
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A uva se tornou pop entre os brasileiros não só pelo crescimento e aperfeiçoamento do cultivo, gerando frutas que agradam ao paladar nacional, mas também pelo posto de aliada da saúde.
Não é de hoje que médicos e nutricionistas incentivam o consumo do alimento e seus derivados. A festa na prescrição começou à base de vinho e nos anos 1990, quando cientistas se debruçaram sobre o que ficou conhecido como paradoxo francês.
“Os franceses tinham uma dieta rica em gordura e, apesar disso, a França era um país com baixa taxa de morte por doença cardiovascular. A explicação encontrada na época foi o consumo de vinho”, resume o farmacêutico Isac Medeiros, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), onde pesquisa os benefícios do vinho produzido no Nordeste.
Desde então, entre fãs e mais céticos, especialistas buscam decifrar as vantagens da bebida, uma questão sempre controversa por envolver álcool.
Ainda assim, não são poucos os estudos que atestam seu papel positivo para o coração, o cérebro e o envelhecimento — a ponto de muito médico ainda recomendar um cálice por dia.
E também já existe farta evidência de laboratório sobre os componentes químicos da uva por trás desses efeitos bem-vindos. Com a boa notícia de que não dependemos apenas do vinho para desfrutar dos seus préstimos à saúde.
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É para comer ou para beber?
Nem toda uva rende um bom vinho ou suco, e é por isso que há uma distinção entre elas. As frutas preferidas para o lanche ou a sobremesa são chamadas uvas de mesa, que têm casca mais fina e são mais fáceis de mastigar, enquanto as utilizadas na produção de vinho são as viníferas.
Embora seja possível fazer vinho com uvas de mesa, as vinícolas preferem a versão própria para isso. É que as espécies viníferas têm a casca mais grossa (boa parte do sabor vem dessa parte do fruto) e sementes mais duras, além de concentrar uma quantidade maior de açúcar, algo fundamental para o processo de fermentação.
Se por um lado esse tipo de uva é mais enjoativo para provar in natura, por outro rende a bebida alcoólica louvada há milênios por tantas civilizações.
O segredo da maioria dos benefícios da uva reside em suas propriedades antioxidantes. Mais exatamente, nos compostos fenólicos, que são produzidos pela própria planta como um mecanismo de autodefesa contra pragas e adversidades climáticas.
Essas substâncias, que incluem nomes famosos nos estudos, como flavonoides e resveratrol, atuam para proteger a semente do fruto e se concentram especialmente na casca — a primeira barreira natural contra as intempéries. Ainda que também apareçam em outras frutas, as uvas e seus derivados esbanjam abundância.
“Um dos motivos é que as uvas sofrem para crescer, e isso aumenta a produção de compostos fenólicos nelas”, explica a biomédica Caroline Dani, que se especializou na ciência da uva e do vinho e criou um instituto de pesquisa batizado com o apelido que ela própria ganhou com seu trabalho na área, Doutora Uva.
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Se a “magia” do fruto está na casca, já temos uma pista do jeito mais eficiente de aproveitar suas dádivas: não descartá-la. Na verdade, bom mesmo, levando a coisa ao pé da letra, seria comer a uva inteira, com semente e tudo. Mas isso, convenhamos, não agrada a maioria dos consumidores.
Mesmo assim, ainda iríamos ingerir menos compostos fenólicos do que os encontrados num copo de suco integral ou de vinho. “É que, na elaboração das bebidas, ocorre uma extração maior dessas substâncias na comparação com o que o nosso corpo consegue absorver após comermos a mesma quantidade de uva”, justifica Caroline.
A fruta tem vantagens únicas, como a maior concentração de fibras, que ajudam o intestino a trabalhar. Porém, se a ideia é surfar a onda dos seus antioxidantes, melhor contar com aquilo que vem no copo. E tinto, de preferência.
Na natureza, não há grande diferença entre o que se encontra de composto fenólico entre uvas roxas e as equivalentes mais clarinhas, mas isso muda de figura quando falamos em vinhos e sucos. Para produzir a bebida tinta, o processamento impõe um contato constante com a casca, algo que não ocorre tanto com a versão branca. Como saldo, mais substâncias protetoras escoam da casca para a garrafa.
O protagonismo do vinho tinto nas pesquisas e nas recomendações também tem a ver com uma questão de mercado. Mesmo em países mais quentes como o Brasil, que tendem a ter um consumo maior de variedades da bebida consideradas mais “refrescantes”, os tintos dominam a preferência.
Em 2021, um levantamento da consultoria internacional Wine Intelligence mostrou que 92% dos brasileiros que bebem vinho com frequência consomem tintos, ante 45% que priorizam os brancos e 30%, os rosés.
Vinho é bom, mas não é remédio
Apesar do clássico apelo da bebida, Caroline alerta que não existe “consumo seguro de álcool”. E beber mais taças esperando obter vantagens extras à saúde é um engano que pode desencadear o efeito oposto.
“Consumindo mais, você não só não terá ganhos adicionais como terá o aspecto maléfico do excesso de álcool”, esclarece Medeiros.
O que os pesquisadores defendem é que, em pessoas saudáveis (atenção para esse ponto!), o consumo moderado de vinho traria benefícios que compensariam eventuais riscos do percentual alcoólico — e nada mais do que um ou dois copos por dia, de acordo com o gênero, o peso e os hábitos do indivíduo. “Os estudos não propõem o vinho como um remédio”, reforça o farmacêutico e professor da UFPB.
Até porque existem alternativas a ele se a ideia é saborear os derivados da fruta e contar com seus serviços à saúde. Que tal um suco integral?
Pesquisas conduzidas pelo time da Doutora Uva mostram que ele é uma boa fonte de antioxidantes. E são esses componentes que anulam os radicais livres, moléculas formadas normalmente no organismo mas que, fora de controle, provocam problemas no coração, na circulação e no cérebro.
Dentro do corpo, os compostos fenólicos atuam inativando esses miniagentes da discórdia, que favorecem, ao longo do tempo, obstruções nas artérias capazes de levar a infarto e acidente vascular cerebral (AVC) e mesmo doenças neurodegenerativas como Parkinson e Alzheimer.
A ciência continua desvendando os impactos da uva e de seus derivados no corpo humano. E até a flora intestinal parece ser afetada pelo consumo.
Um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade de Brasília (UnB), em colaboração com colegas de fora do país, publicou um experimento inédito que mapeou as consequências da ingestão de vinho na microbiota.
Ao longo de três semanas, voluntários com problemas nas artérias do coração e idade média de 60 anos consumiram um copo de 250 mililitros de vinho diariamente. Depois, ficaram em abstinência pelo mesmo período.
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O trabalho concluiu que, depois do consumo regular e controlado da bebida, a composição e a diversidade das bactérias do intestino haviam se alterado — e para melhor, pensando na saúde do hospedeiro. Ganharam preponderância aquelas responsáveis por produzir ácidos graxos de cadeia curta, moléculas com um potencial anti-inflamatório e útil na prevenção de diversas doenças, entre elas as cardiovasculares.
“Sempre se pensou que a absorção dos compostos fenólicos acontecesse na circulação sanguínea. Mas hoje sabemos que em torno de 85% dela é intestinal”, comenta Caroline Dani.
Currículo em expansão
Da mesma forma que o cultivo de uvas ganhou praticamente todos os continentes, e viu Brasil, África do Sul e Austrália entrarem num terreno antes monopolizado pelos europeus, vem se ampliando o leque de estudos sobre os benefícios do fruto e seus derivados.
Nos Estados Unidos, uma equipe da Universidade de Delaware examinou os efeitos da uva especialmente na saúde de mulheres na pós-menopausa. E notou melhoras em indicadores tão variados como nível de triglicérides no sangue e funções cognitivas.
Em laboratório, outra equipe americana observou que a adição da fruta no cardápio de ratos reduziu significativamente a gordura no fígado, mesmo quando eles seguiam um padrão alimentar desequilibrado, à la dieta ocidental.
Nos domínios da cabeça, poucas substâncias relacionadas à uva ganharam tanto destaque nos últimos anos quanto o resveratrol, um polifenol presente sobretudo em variedades mais escuras e no suco e no vinho tintos.
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“Quando se começou a estudar o que a uva tinha que outros alimentos normalmente não tinham, ele logo apareceu como composto de interesse”, recorda Caroline.
Fora a defesa das artérias, as pesquisas mais promissoras com o resveratrol apontam uma possível proteção contra problemas mentais e cognitivos — ansiedade, depressão, Parkinson, Alzheimer…
Mas cabe uma dose de cautela aqui, pois a substância vira e mexe é alçada, na forma de suplementos, como cura milagrosa ou elixir da prevenção de todos os males. E não é bem assim!
“Sabemos que o resveratrol é benéfico em sinergia com outros compostos fenólicos, mas não se pode afirmar ainda que existe uma quantidade segura e efetiva para consumi-lo de forma isolada”, contextualiza a biomédica de Porto Alegre.
Se sinergia faz diferença, vale ter isso em mente ao procurar os produtos feitos com a uva. “Em geral, quanto mais colorido o vinho, mais compostos funcionais ele vai ter. A mesma coisa para o suco”, orienta Patrícia. E suco integral, frisa a pesquisadora da Embrapa — néctares e bebidas em pó não concentram os elementos protetores.
A adição de outros ingredientes à mistura também bota a perder as benesses do vinho. “Sangrias, coquetéis e outras receitas envolvendo a bebida são muito diluídos, com um potencial funcional muito menor”, diz a estudiosa.
Aliás, quanto mais etapas distanciando o produto final da fruta in natura, mais questões nutricionais devem ser consideradas pelo consumidor. É o caso, por exemplo, de geleias, que muitas vezes envolvem a adição de açúcar e conservantes, e de alimentos expostos ao calor, capaz de destruir os compostos fenólicos.
Da mesma forma, os experts torcem o nariz para os vinhos coloniais, feitos com uvas de mesa. Como elas são menos adequadas à fermentação que as viníferas, pode haver adição de álcool e açúcar de outras fontes.
No caso dos sucos, quando se fala na bebida integral, isso significa sem acréscimo de água, açúcar ou conservante. E convém ficar esperto porque, se você não olhar direito o rótulo, pode levar para casa produtos que incluem outras frutas na composição ou são lotados de açúcar, sódio e aditivos.
O suco integral é uma ótima pedida para tirar vantagem do mix de compostos das uvas sem incorrer em riscos ligados ao álcool em si, que é contraindicado a uma porção de gente.
Com exceção do vinho, que tem uma recomendação de consumo mais restrita justamente por causa do álcool, não existem limites definidos para a ingestão do suco ou da fruta em si. Vai depender das características da pessoa e do restante da dieta.
Mas especialistas acreditam que o corpo agradece se você tomar cerca de 300 a 400 mililitros da bebida integral ou comer algo em torno de 100 gramas de uvas frescas por dia.
“A ideia não é consumir um ou outro, mas ter mais de uma fonte, aproveitando todo o potencial da uva”, aconselha a Doutora Uva. Sim, dessa festa ninguém precisa ficar de fora.
E a uva-passa?
Ela suscita dúvidas e polêmicas. E tudo por concentrar mais os componentes da fruta fresca. Em média, a passa tem de duas a quatro vezes mais nutrientes que a uva comum, botando fibras e polifenóis nessa conta.
Legal, né? Mas tem o outro lado. “No processo de desidratação, você tira água e acumula outros elementos, inclusive o açúcar”, esclarece a biomédica Caroline Dani.
Ou seja, a uva-passa vira um reduto de carboidratos e calorias — são 299 calorias em 100 gramas, ante 69 calorias na mesma quantidade de uva in natura. Então é importante pesar essas coisas, especialmente se você precisa cuidar do peso ou dos níveis de glicose no sangue.