Ao andar por um bosque, olhe bem onde pisa: fora as folhas secas, plantas e insetos, é muito provável que você vá enxergar pequenos cogumelos brotando do chão ou atrelados aos troncos e raízes das árvores. O que não fica tão óbvio ao primeiro olhar é como eles são os donos do pedaço. O cogumelo é só a parte mais visível de algumas espécies de fungos — a porção que eles utilizam para se reproduzir.
Mas é ali embaixo, no subterrâneo, que se encontram as estruturas e conexões que dão a essas criaturas um domínio sobre (e sob) a terra. Não só: graças às redes fúngicas, fica garantida a coesão do solo e uma infinidade de vegetais arrumam nutrientes que não conseguiriam obter sozinhos.
Nove em cada dez plantas dependem da chamada “internet das árvores”, esse sistema em que os “cabos” são formados por fungos que, além de nutrir, compartilham informações químicas sobre as pragas e ameaças por perto. Parece incrível — e é mesmo!
“Quanto mais aprendemos sobre os fungos, mais as coisas deixam de fazer sentido sem eles”, escreve o biólogo britânico Merlin Sheldrake no recém-lançado A Trama da Vida (Fósforo/Ubu). Como explica o autor, um estudioso apaixonado por esse reino, os fungos são relativamente pouco conhecidos pela ciência, apesar das suas proezas já identificadas.
Estima-se que haja cerca de 3 milhões de espécies pelo mundo. Além do papel de peso no ecossistema, são elas que estão por trás das caríssimas trufas, raladas sobre os pratos de restaurantes refinados, do shimeji do rodízio japonês, da penicilina, o primeiro antibiótico da história, e do inconveniente mofo que cresce no teto da sua casa. Mas, desse total, apenas 6% estão efetivamente catalogadas e classificadas.
Não que nosso contato com os fungos seja recente. Suas propriedades são percebidas, na verdade, desde a Antiguidade. Sem as leveduras, integrantes do grupo, os pães não cresceriam nem a uva e a cevada poderiam ser fermentadas para virar vinho e cerveja.
Muito antes de a penicilina ser descoberta, no início do século 20, cogumelos já eram consumidos por tribos e povos que buscavam seus efeitos terapêuticos e alucinógenos. Sem falar nos psicodélicos, que roubaram a cena nos anos 1960 e hoje são alvo de estudos para transtornos mentais.
O meio ambiente também tem a ganhar com a nossa maior compreensão dos fungos. Na luta contra poluentes e outros dejetos, já tem gente usando essas criaturas para limpar as águas (a micofiltração) ou quebrar as toxinas de vazamentos de óleo no oceano (a micorremediação). E outros utilizam compostos feitos a partir de fungos para substituir os plásticos (a micomanufatura). A propósito, “mico” vem de mykes, palavra grega para fungos.
“Em nível molecular, os fungos e os humanos são semelhantes o suficiente para, em muitos casos, se beneficiarem das mesmas inovações bioquímicas”, crava Sheldrake. “Estamos apenas começando a entender a complexidade e sofisticação da vida dos fungos.”
Sem os fungos, não teríamos…
Eles são decisivos para a sobrevivência da nossa espécie e do planeta
- Solos cultiváveis: sem a armação exercida pelos fungos, a terra sofreria facilmente erosão, o que inviabilizaria a agricultura. Eles ajudam a sustentar e alimentar as plantas.
- Internet das árvores: cerca de 90% das plantas dependem de fungos micorrízicos, que as ligam em redes compartilhadas debaixo da terra. Suas raízes trocam nutrientes e informações com eles.
- Pão e vinho: as leveduras encenam a fermentação, que faz a massa dos pães crescer e o açúcar vegetal se transformar em álcool, processo que dá origem ao vinho e à cerveja, entre outras bebidas.
- Remédios: vários medicamentos são sintetizados a partir de substâncias dos fungos. O mais famoso é a penicilina, um antibiótico. Mas hoje se cultivam fungos para fabricar até insulina.
- Ideias sustentáveis: o micélio, a parte subterrânea do fungo, já é testado para filtrar água e quebrar poluentes. Outro ramo busca substituir plástico e couro por tecidos feitos com essa estrutura.
Cogumelos à mesa
Aos nossos olhos, talvez quem mais faça sucesso nessa conexão entre fungos e humanos sejam os cogumelos comestíveis. De fato, champignon, shiitake e companhia são considerados fontes de proteínas, fibras, vitaminas e minerais, além de exibirem um baixo valor calórico. Curingas na cozinha, vão bem em saladas, molhos, caldos e até mesmo como prato principal — a textura os torna bons substitutos das carnes.
E tem para todos os gostos e bolsos: do champignon baratinho que você encontra em conserva no mercado até a cobiçada trufa-branca italiana, que chega a custar mais de 7 mil dólares o quilo. Mas, mesmo na culinária, conhecemos muito menos os fungos do que deveríamos.
E não é à toa que já tem pesquisador falando em FANC, fungos alimentícios não convencionais, nome inspirado nas PANC, as plantas com essas características. Dificilmente você vai encontrar hoje um FANC nas gôndolas. É preciso caçar pela natureza mesmo.
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“Coletar cogumelos silvestres demanda conhecimento. Caso a pessoa cometa um erro, há risco de intoxicação ao ingerir”, explica o biólogo Jeferson Timm, autor do livro Primavera Fungi: Guia de Fungos do Sul do Brasil (Via Sapiens), que cataloga espécies comestíveis muito além das já consagradas.
A ideia de perfilar esses cogumelos é bacana não só do ponto de vista científico. É uma forma de ter mais segurança nas caçadas por aí, já que alguns fungos podem ser tóxicos. E a questão não se restringe ao risco de comer o que não se deve: tem o fato de que nem todos são exatamente saborosos. “Há uma grande variedade de fungos sem valor gastronômico em função de texturas e sabores desagradáveis ou de tamanhos diminutos”, conta Timm.
Outro ponto que joga contra uma maior presença desses cogumelos na nossa alimentação é que nem sempre eles podem ser domesticados para cultivo — muitos dependem da relação com determinadas plantas na natureza para se desenvolver.
É o que torna as trufas tão caras: quando chega a época da “colheita”, os europeus que vivem do seu comércio precisam sair à “caça” dos fungos que aparecem nas raízes das árvores, geralmente com ajuda de cães farejadores treinados para detectar seu aroma típico. E, se dormem no ponto, podem ser alvo dos “roubos” de quem chegou antes.
Nem toda caçada é movida por cifrões. Timm e outros biólogos buscam identificar as espécies que existem em suas regiões para ampliar o conhecimento a respeito e incorporar fungos relativamente comuns, mas menos famosos, na rotina das pessoas.
Na maior parte do tempo, os fungos têm um modo de vida críptico, escondido no subsolo ou dentro de troncos de madeira. Quando nós os vemos, já é na etapa da reprodução, o momento em que o cogumelo surge para espalhar seus esporos.
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“Em uma comparação, é como se só pudéssemos ver as plantas quando estão com frutos. Se a espécie não está no período reprodutivo, isso dificulta as pesquisas e diminui a ‘popularidade’ dos fungos em relação a plantas e animais”, aponta Timm.
As expedições desse gaúcho, porém, ajudam a expandir nossas ideias e alongar a lista dos FANC. “Além de levar espécies diferenciadas para a culinária, o cultivo representa um potencial para a manutenção dos recursos genéticos dessas espécies e um elemento de proteção à biodiversidade”, argumenta Timm.
E, com mais conscientização, também se reduz a micofobia, o medo de que fungos se resumam a venenos, drogas e doenças.
Espécies à mesa
Cogumelos reúnem proteínas, fibras, vitaminas e minerais — e poucas calorias. Aproveite a variedade e sua versatilidade nas receitas
- Shiitake: ótima alternativa às carnes por ter uma boa dose de proteína e a consistência mais dura. A textura, porém, costuma exigir um cozimento prévio, especialmente para usar o talo.
- Shimeji: o cozimento também é recomendado, mas para tornar o sabor característico mais palatável, já que o produto in natura é amargo. Como o shiitake, entrega proteínas e fibras.
- Champignon: também chamado de cogumelo-de-paris, é o mais versátil, podendo ser consumido cru ou em conserva. Suas fibras são uma boa pedida para o bom funcionamento do intestino.
- Porcini: mais encontrado na versão seca — é um dos tipos de funghi secchi —, pode ser reidratado em 15 minutos na água. Como os demais, é rico em minerais como selênio e vitaminas do complexo B.
- Auricularia: a “orelha-de-judas”, com um formato já explicitado pelo nome, cresce em troncos e costuma ter cor marrom. Pode ser desidratada e saboreada. Estudam suas atividades anti-inflamatórias.
Atenção à aventura
Se quiser sair à caça de cogumelos comestíveis, vá armado… de conhecimento. “Mas não existem regras ou dicas básicas e gerais para determinar a comestibilidade das espécies”, já adianta o biólogo Jeferson Timm. Uma orientação inicial é aprender a reconhecer aqueles já utilizados na culinária com a qual você é familiarizado.
Para tentar algo diferente, é crucial consultar guias e manuais, de preferência bem ilustrados. Cerca de 2% dos cogumelos são tóxicos, então tem que tomar cuidado para não colocar na boca algo potencialmente perigoso. O ideal mesmo é contar com o suporte de um especialista no assunto. Hoje já existem grupos com biólogos que organizam expedições atrás de fungos comestíveis.
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A carne dos deuses
Um dos efeitos mais surpreendentes e controversos dos fungos acontece bem dentro da nossa cabeça. Lá em 1486, na coroação do imperador asteca Ahuizotl, cogumelos comestíveis foram entregues aos presentes na cerimônia — não pelo seu sabor, mas porque eram capazes de alterar a mente dos convidados. A tradição vinha de longe e se manteve no governo do lendário Montezuma II, no início do século 16.
Fungos induziam visões místicas e eram reverenciados por povos originários do que hoje é o México. Eles os chamavam de teonanáctl, a “carne dos deuses”. Mas, para os conquistadores europeus que escreveram depois sobre esse hábito, a interpretação foi outra.
“Quando ingeridos causam não a morte, mas a loucura por vezes duradoura, cujo sintoma é uma espécie de riso descontrolado. Há ainda outros que, sem induzir risada, trazem para diante dos olhos todo o tipo de visão, como guerras e seres semelhantes a demônios”, anotou Francisco Hernández, médico do rei da Espanha à época, que é citado no livro de Sheldrake. A graça de uns, o terror de outros.
Fungos no tratamento
Agora corta para 1957. Um artigo na revista americana Life trazia o relato de um viajante que havia subido as montanhas mexicanas e protagonizara uma experiência transformadora após consumir fungos alucinógenos apreciados pelos nativos descendentes dos astecas.
Nascia, aí, o termo “cogumelos mágicos”, que gerou uma explosão de interesse por esses ingredientes da sabedoria ancestral e sua capacidade de alterar a consciência.
Eles viraram um fenômeno da contracultura, adorados pelos hippies e escandalizando as autoridades. Quase imediatamente tornaram-se ilegais nos EUA e em outros países. Um novo capítulo na cruzada antidrogas e o renascimento de uma estigmatização que ecoava a invasão espanhola — se aquilo fazia ver “demônios”, boa coisa não podia ser.
A ciência pelo menos conseguiu descobrir o que encantou os astecas e seus herdeiros (e, mais tarde, os hippies). Aqueles cogumelos eram produtores de psilocibina, uma substância para sempre associada a viagens psicodélicas. Mas seus efeitos mentais não param aí.
Ainda que as pesquisas com a psilocibina tenham sido comprometidas por anos por causa da desembestada e pouco eficiente guerra às drogas, hoje cada vez mais estudiosos reconhecem seu potencial terapêutico para transtornos psíquicos.
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“Atualmente, o maior problema é o número relativamente pequeno de estudos, comparado ao que seria necessário. Trâmites burocráticos e o preconceito ainda dificultam esse campo de pesquisa, embora isso venha mudando”, contextualiza o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, coordenador do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Em nosso corpo, a psilocibina é transformada em psilocina, atuando diretamente no cérebro: ela estimula os receptores de serotonina, neurotransmissor fundamental para regular vários aspectos da vida e a sensação de bem-estar, e reduz a atividade de algumas áreas que seriam importantes para nosso senso de identidade. O resultado da interação é que novas redes neurais antes impensáveis começam a ser ativadas.
Embora a forma exata como isso resulta em experiências transcendentais ainda seja motivo de estudo, os especialistas acreditam que a chave da “nova perspectiva” de mundo despertada pelos psicodélicos esteja aí. E não é só com a psilocibina: o LSD é obtido a partir de fungos do tipo ergot.
O impacto dessas criaturas no sistema nervoso nem é uma exclusividade do ser humano. O fungo Ophiocordyceps habita o corpo de formigas-carpinteiras e altera completamente o comportamento delas.
Elas passam a contrariar seus hábitos convencionais e frequentar lugares que favorecem a reprodução do fungo. Perdem seu “medo de altura” e sobem em certas árvores. Uma vez lá em cima, se alimentam, morrem, e o cogumelo cresce sobre sua carcaça, despejando esporos sobre outras formigas lá embaixo, recomeçando o ciclo.
Nós não somos abduzidos dessa forma, claro. Tampouco se sabe qual seria a vantagem evolutiva para os fungos quando pessoas experimentam visões psicodélicas ou transcendentais. Mas, para a sorte da espécie humana, dá para vislumbrar muitas promessas da psilocibina e afins para nossa saúde mental. Pesquisas apontam efeitos positivos diante de depressão e estresse pós-traumático, por exemplo.
Um estudo da Universidade Johns Hopkins, nos EUA, testou a substância em voluntários diagnosticados com câncer terminal que apresentavam ansiedade, depressão e sofrimento existencial. Após uma única dose, 80% relataram redução desses sintomas, e isso se manteve seis meses mais tarde.
Outras linhas de pesquisa se debruçam sobre os impactos no tratamento de dependência química (por álcool e cigarro), anorexia nervosa e fibromialgia. “Temos que entender que, como qualquer substância sobre a qual se depositam esperanças de um potencial terapêutico, pode haver benefícios, mas não milagres”, pontua Tófoli.
Há contraindicações, como indivíduos com esquizofrenia ou outros tipos de surto psicótico, e muita gente resiste a se sujeitar a um estado de alteração da consciência como tratamento.
“Caso seus efeitos sejam comprovados, esses psicodélicos serão mais uma ferramenta, que vem a se somar, e não disputar espaço com as já existentes”, ressalta o professor da Unicamp. A expectativa em torno dos fungos não é de hoje — há pinturas rupestres com referências a cogumelos feitas por nossos antepassados pré-históricos.
“É provável que os fungos venham manipulando a mente dos animais desde que há mentes para tanto”, escreve Sheldrake em A Trama da Vida. Eis uma (re)descoberta que começa sob os nossos pés e mexe literalmente com a nossa cabeça.
O que está em estudo
Obtida de fungos, a psilocibina abre uma nova frente nas pesquisas para tratar transtornos mentais e outras doenças
- Depressão: em experimentos, a psilocibina foi equivalente ou até superior a alguns antidepressivos consagrados. A dosagem adequada para maximizar os efeitos ainda é debatida.
- Estresse pós-traumático: a substância teria o potencial de quebrar o ciclo de temores que ocorre após um trauma. Mas se avaliam riscos de eventuais recaídas em pessoas sensíveis.
- Ansiedade: mesmo com microdoses, a psilocibina ajudou a aliviar em testes, o que poderia ser efeito placebo. Em doses maiores, porém, o impacto foi maior que o dos remédios atuais.
- Fim de vida: um dos estudos mais citados, com pacientes diagnosticados com câncer terminal, mostrou redução duradoura de sintomas como depressão e ansiedade em até 80% deles.
- Dor crônica: pesquisas em estágio inicial querem avaliar se a psilocibina e outros psicodélicos conseguem melhorar o dia a dia de quem sofre com fibromialgia e outras dores crônicas.
O lado B dos fungos
Eles podem nos ajudar a tratar doenças e há espécies bem-vindas inclusive dentro do nosso corpo, mas é fato que alguns fungos causam problemas — em geral, quando nossa imunidade está em baixa.
As chateações incluem micoses de unha e frieiras, candidíase (que afeta a mucosa de regiões como os genitais e a boca) e doenças respiratórias como pneumonia e aquelas causadas pela aspiração de fungos e seus esporos, caso da aspergilose e da blastomicose.
Para lidar com esses estorvos, há uma gama de medicamentos antifúngicos, com diferentes dosagens e intensidades, de acordo com a gravidade da infecção. A indicação deve ser precisa e orientada por um médico, até porque já há casos de fungos multirresistentes.