Certa ocasião, um escritor de sucesso bateu à porta do consultório do psiquiatra e psicoterapeuta Wimer Bottura Júnior, em São Paulo. Entre outras queixas, ele relatava dificuldade para escrever. Não era bloqueio criativo ou algo do gênero. Seu problema era outro: uma inexplicável paralisia na mão direita!
O sujeito já tinha consultado inúmeros médicos, se submetido a intermináveis exames e ouvido incontáveis diagnósticos. Nada lhe devolvia a esperança de, um dia, voltar a escrever. Depois de algumas sessões de terapia, Bottura decifrou o enigma: a causa não era orgânica, mas psicológica. O ódio que o rapaz sentia pelo pai era tanto que ele chegava a desejar sua morte. No dia em que o pai morreu, sua mão, sem motivo aparente, perdeu os movimentos.
“Sentir raiva é importante porque garante nossa sobrevivência e proteção. O problema é quando sentimos raiva de quem amamos. Naquele caso, o escritor somatizou o ódio que sentia pelo pai: a mão que escreve é a mesma que, se pudesse, daria a facada”, desvenda Bottura, hoje presidente da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática (ABMP).
A psicossomática é o ramo da saúde que se dedica ao estudo do elo entre corpo e mente — ambos formam uma coisa só, integral e inseparável. A origem grega do termo diz tudo: “psico” (mente) + “somático” (corpo). “Dentro dessa perspectiva, cuidamos do sujeito que adoece, e não da doença ou de um órgão adoecido”, sintetiza a psicóloga Taritza Basler, presidente da regional gaúcha da ABMP.
“Sintomas ou doenças são como pistas de que algo está errado em nosso corpo e, por essa razão, precisa ser investigado. É como uma voz que precisa ser ouvida e não há como calar. Se for necessário gritar, assim será. O objetivo é libertar o paciente daquilo que o impede de viver com saúde”, explica.
Pacientes somatizadores, como o escritor da mão paralisada, existem aos montes. As Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) estão cheias deles. Um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) realizado em 15 países, como Estados Unidos, Alemanha, Japão, Brasil e Índia, aponta que 20% dos cidadãos atendidos em serviços de atenção primária sofrem de algum grau de somatização. Ou seja, tendem a manifestar aflições, traumas ou conflitos psíquicos por meio de sintomas ou doenças corporais.
Segundo outras pesquisas internacionais, o índice de pessoas que recorrem a postos de saúde sem uma doença física constatável, reconhecível e catalogável pela Classificação Internacional de Doenças (CID) pode variar de 50 a 70%. Isso depois de submetidos a procedimentos de rotina, como exames de sangue e urina, raios X de tórax e aferição da pressão.
“A somatização é um fenômeno extremamente comum na prática médica”, afirma o psicólogo e psicanalista Lazslo Antônio Ávila, doutor em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo (USP).
“Em geral, corpo e mente funcionam bem. Mas, às vezes, a sobrecarga é tanta — física ou emocional — que desequilibra esse funcionamento. É assim que nascem as somatizações”, destrincha o autor de livros como Doenças do Corpo e Doenças da Alma (clique para comprar) e O Eu e o Corpo (Editora Escuta).
A mente sofre, o corpo sente
Para ser considerado somatizador, o paciente tem de apresentar mais de três sintomas, de sistemas orgânicos diferentes, por mais de dois anos
Dolorosos
• Dor difusa pelo corpo
• Cefaleia
• Dor nas costas
• Dor articular
• Dor ao urinar
• Desconforto nas extremidades
Gastrointestinais
• Náusea
• Vômito
• Incômodo
no abdômen
• Distensão e
excesso de gases
• Intolerância alimentar
Cardiorrespiratórios
• Palpitação
• Falta de ar
• Desconforto
no peito
• Tontura
• Fadiga
• Desmaio
Neurológicos
• Amnésia
• Visão alterada
• Perda da voz
• Pseudoconvulsões
• Fraqueza muscular
• Dificuldade para caminhar, deglutir…
Reprodutivos
• Sensação de queimação nos
órgãos sexuais
• Menstruação dolorosa
• Ciclos irregulares
• Vômitos e outros sintomas na gravidez
O termo “somatização” foi criado pelo psiquiatra austríaco Wilhelm Stekel (1868-1940), ex-discípulo de Sigmund Freud (1856-1939), em 1924 e incorporado ao terceiro Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-3), da Associação Americana de Psiquiatria, em 1980. Ao longo das décadas, ganhou alguns sinônimos, como “transtornos somatoformes” e “síndromes funcionais”. E, também, apelidos, todos pouco lisonjeiros, caso de “piti” e “piripaque”.
Muitas vezes, somatizadores são alvos de preconceito por parte de profissionais da saúde e confundidos com pacientes “chatos”, “difíceis” ou “queixosos”. “Houve um tempo, lá pelos anos 1990, em que o termo ‘doença psicossomática’ designava males que se manifestavam organicamente, mas tinham forte componente emocional.
Hoje sabemos que todas as doenças têm um lado psicossomático — isto é, há tanto componentes somáticos quanto fatores psicológicos envolvidos. Seria reducionismo achar que o ser humano não passa de um corpo que adoece”, analisa Ávila.
Na maioria das vezes, os sintomas relatados pelos pacientes somatizadores podem ser divididos, entre outros grupos, em dolorosos (dor de cabeça ou pelo corpo, por exemplo), cardiorrespiratórios (falta de ar e palpitação) e gastrointestinais (vômito e diarreia).
Para alguém ser considerado somatizador, são necessárias duas condições: a primeira é a presença de mais de três sintomas, vagos ou exacerbados, em sistemas orgânicos diferentes; e a segunda é que essas queixas tenham uma evolução crônica de, no mínimo, mais de dois anos. De difícil diagnóstico, esses pacientes costumam apresentar em paralelo outros transtornos, como depressão e ansiedade.
“Somatizadores também se preocupam excessivamente com os sintomas que apresentam e suas possíveis consequências catastróficas. E essa preocupação, em geral, é desproporcional ao que sentem. Qualquer desconforto é interpretado como doença. Em toda e qualquer situação, tendem a esperar sempre pelo pior”, descreve o psiquiatra Antonio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
É só coisa da sua cabeça?
Quando falamos em problemas psicossomáticos, parece até natural evocar personagens como Argan, o protagonista de O Doente Imaginário (clique para comprar), do dramaturgo francês Molière (1622-1673). O mais famoso hipocondríaco da literatura universal não sai do médico e toma dezenas de pílulas. Chega a desejar que a filha se case com um doutor só para receber tratamento gratuito. No fim, termina comprando, ele mesmo, o diploma de médico.
“Embora tenham características em comum, somatização e hipocondria são condições diferentes”, pontua o psiquiatra e psicanalista José Atílio Bombana, doutor pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autor de artigos científicos como Sintomas Somáticos Inexplicados Clinicamente.
Enquanto na somatização há sintomas corporais não explicados organicamente, na hipocondria o que há é a interpretação equivocada de sensações corriqueiras. “O hipocondríaco teme e acredita que está gravemente doente”, esclarece Bombana.
Em ambos os casos, porém, somatizadores e hipocondríacos demonstram grande interesse por assuntos médicos, buscam serviços de saúde repetidas vezes e, quando atendidos, podem solicitar exames de modo exagerado. Bombana é ex-coordenador do Programa de Atendimento e Estudos de Somatização (PAES) da Unifesp, que oferece triagem e atendimento a pacientes com transtorno de somatização. O espectro, aliás, é amplo e abrange, entre outras condições, fibromialgia e síndrome da fadiga crônica.
Em mais de 20 anos de PAES, Bombana já atendeu a um sem-número de casos. Um dos mais intrigantes é o de uma comerciante, viúva e mãe de três filhos. Portadora de asma, ela colecionava sintomas: dor no peito, fraqueza nas pernas, dificuldade para dormir… Aos poucos, descobriu-se que, quando criança, testemunhou episódios de violência física entre os pais e tentativa de suicídio e internação psiquiátrica do irmão.
Já adulta, casou, abortou duas vezes e flagrou uma traição do marido. Quanto à asma, o quadro teve início apenas dois dias depois da morte do marido. Por fim, foi diagnosticada com transtorno de somatização e de ansiedade. “Ela participou do grupo de psicoterapia e fazia uso de antidepressivo e ansiolítico. A melhora dos sintomas permitiu a redução gradativa dos medicamentos”, conta o médico.
Tá tudo conectado!
As emoções podem mexer literalmente com o corpo inteiro. Dê uma espiada
Medo: o cérebro fica sob efeito dos hormônios do estresse. O coração acelera e a respiração acaba mais ofegante. Em excesso, o medo vira fobia.
Raiva: vai de uma simples irritação até um ataque de fúria. Causa sudorese, taquicardia e tensão muscular — em demasia, vêm reações inflamatórias.
Tristeza: não tem o impacto da depressão, mas pode afetar especialmente a imunidade, além de dificultar o sono, restringir o apetite e ampliar dores.
Alegria: o corpo não produz hormônios só quando fica tenso. Quando estamos felizes, liberamos substâncias que relaxam e fortalecem as defesas.
Em tempos de crises como esta pandemia, episódios de manifestações somáticas, ou seja, de sintomas sem doenças necessariamente orgânicas, costumam aumentar. É o que sugere uma pesquisa da ABP feita em 2020.
Segundo levantamento que ouviu 400 psiquiatras, 68% deles receberam novos pacientes durante o período de distanciamento social, 70% voltaram a atender pacientes que já tinham recebido alta e 89% notaram o agravamento dos quadros de ansiedade, depressão e transtorno de pânico em pacientes que ainda estavam em tratamento. Sem diagnóstico preciso e acompanhamento adequado, situações psicossomáticas recorrentes, como dores e fadiga, podem evoluir para quadros mais graves, como desmaios, convulsões e paralisias.
“Embora não seja curável, o transtorno de somatização é tratável”, reforça Silva. “O importante é intervir quanto antes para evitar o agravamento do quadro e propiciar a remissão dos sintomas. O objetivo é devolver ao indivíduo a autonomia para o enfrentamento de situações que, até pouco tempo atrás, lhe causariam sofrimento e prejuízo funcional”, completa o presidente da ABP.
Manual de sobrevivência
Mas será que dá para prevenir as manifestações negativas que fluem entre a mente e o corpo? Vejamos. Em janeiro deste ano, a psicóloga Ilana Pinsky atendeu a um chamado para trabalhar como voluntária em um centro de vacinação da Universidade Colúmbia, em Nova York, onde mora com a família. Lá, entre outras tarefas, aferia a temperatura dos pacientes, ajudava no preenchimento de formulários e agendava consultas médicas.
“Ver pessoas felizes, tanto por estarem sendo imunizadas quanto por estarem ajudando os outros, me fez muito bem”, revela a coautora do livro recém-lançado Saúde Emocional — Como Não Pirar em Tempos Instáveis (clique para comprar), ao lado do psiquatra Marcelo Ribeiro. “Ser parte da resolução de um problema faz muito bem à saúde.”
Na mesma época, sua sogra, de 87 anos, resolveu aprender a jogar xadrez. Depois de algumas aulas online, Lilia já arrisca os primeiros movimentos de torres, peões e cavalos em tabuleiros virtuais com crianças e adolescentes. “O otimismo ajuda a turbinar nossa saúde emocional. Não o otimismo utópico e imaginário da Poliana, que insiste em dizer que está tudo bem quando sabemos que não está. Mas o otimismo realista e pragmático, que nos encoraja a acreditar que o futuro há de ser sempre melhor que o presente”, explica Ilana, citando o clássico infantojuvenil escrito por Eleanor H. Porter (1868-1920).
Manter o otimismo e os propósitos de vida é uma das estratégias prescritas pelos autores de Saúde Emocional para enfrentar realidades difíceis como a atual. Outra ferramenta bem-vinda é a resiliência. No sentido próprio, o termo faz referência à capacidade que, segundo a física, alguns corpos apresentam de retornar à forma original depois de submetidos a uma deformação elástica. Na linguagem figurada, é a capacidade que alguns de nós temos de superar situações adversas e nos adaptar a novas realidades.
“Pessoas sugestionáveis são capazes de sentir os sintomas da Covid-19 como se tivessem sido contaminadas de fato. Da mesma forma, a simples expectativa de tomar a vacina já fortalece o sistema imunológico e nos torna mais resistentes ao contágio. Os resilientes tendem a encarar com mais vitalidade e robustez as doenças que, por acaso, venham a contrair”, explica o psicólogo Esdras Vasconcellos, professor da USP e um dos pioneiros em estudos sobre a relação entre a cabeça e a imunidade em nosso país.
Se houvesse um kit sobrevivência para oferecer aos pacientes em momentos árduos como esta longa pandemia, há terapeutas que acrescentariam, além de frascos de otimismo e cartelas de resiliência, doses de fé. Sim, como já pregam algumas pesquisas, exercer uma espiritualidade ou religiosidade pode fazer muito bem à mente e ao corpo. Mas, como tudo que diz respeito à saúde, também depende da dosagem.
Quem se excede ou descarta as abordagens médicas tradicionais pode penar com reações adversas e até a amplificação de alguns sintomas. “Para muitos, ter fé ajuda a tornar a vida mais suportável. Assim como a encarar melhor certas ameaças, como os adoecimentos. No entanto, a relação não é simplista, do tipo ‘basta ter fé e tudo se resolve’. Quando a crença beira o fanatismo, em vez de ajudar, pode prejudicar o tratamento”, pondera Bombana. “É como diz a letra daquela velha canção do Milton Nascimento: ‘fé cega, faca amolada’”, cita o psiquiatra da Unifesp.
Em No Fim Dá Certo, uma de suas crônicas mais famosas, o escritor mineiro Fernando Sabino (1923-2004) recorda algumas das lições que aprendeu com o pai, seu Domingos: “As coisas são como são, e não como deviam ser”, “O que não tem solução solucionado está” e “Trate os outros como gostaria de ser tratado”. Nenhuma outra, porém, faz tanto sentido nos dias de hoje quanto “No fim, tudo dá certo. Se não deu, é porque ainda não chegou ao fim”.