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Vacina russa para o coronavírus: por que é importante ser cauteloso

Estudo com resultados positivos da vacina Sputnik V contra a Covid-19 é pequeno, tem limitações consideráveis e foi questionado por dados duvidosos

Por Chloé Pinheiro
Atualizado em 10 set 2020, 12h41 - Publicado em 9 set 2020, 16h55

A Rússia anunciou no dia 8 de setembro que o primeiro lote da sua vacina contra o coronavírus, a Sputnik V, será distribuído para a população, como mostra VEJA. A liberação precoce foi motivada por resultados positivos de estudos clínicos de fases 1 e 2, divulgados no The Lancet. Mas essas pesquisas, além de pequenas e com limitações que impedem comprovar a eficácia a segurança, tiveram seus dados questionados por um grupo de cientistas — eles estranharam pontos do artigo e solicitaram mais informações para descartar qualquer fraude.

Antes de chegar nesse ponto, convém abordar em mais detalhes a vacina russa. Ela utiliza dois vetores virais diferentes, que são vírus com código genético modificado para não provocarem doenças e para conterem partes da estrutura do novo coronavírus. Nesse caso específico, os experts usaram versões alteradas do adenovírus 5 e do 26 (que circulam entre seres humanos) e inseriram neles a proteína S, que são os espinhos que recobrem o Sars-CoV-2. O contato com essa estrutura faria o organismo levantar suas defesas contra a pandemia do momento.

A tecnologia é semelhante à da vacina de Oxford. Mas, enquanto o imunizante inglês utiliza só um adenovírus (que ataca originalmente chimpanzés), a russa combina dois vetores, como dissemos antes. “Trata-se de uma estratégia elegante, que pode evitar que a reação a um vetor atrapalhe a resposta imune”, comenta Natália Pasternak, microbiologista e fundadora do Instituto Questão de Ciência. Ou seja, se por um acaso seu corpo anular um dos vetores, ainda haveria outro para ajudar a estimular suas defesas.

As pesquisas publicadas até o momento em seres humanos com esse imunizante somaram apenas 76 voluntários, o que é muito pouco. A título de comparação, as fases 1 e 2 da vacina de Oxford reuniram 1 077 participantes.

De qualquer forma, as pessoas que receberam a Sputnik V teriam produzido anticorpos e não apresentado efeitos colaterais relevantes durante a duração da investigação, segundo o artigo no The Lancet.

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“Os dados também apontam uma resposta imune celular, outro mecanismo importante de defesa contra a Covid-19”, comenta Flávio Guimarães, pesquisador do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Nosso corpo não se protege do coronavírus apenas com anticorpos — ele também se vale de certos linfócitos, que são células de defesa. Essa é a tal resposta imune celular.

“O fato de os resultados terem sido publicados em um periódico renomado ajuda a dar credibilidade, porque teriam passado por um bom processo de revisão, incluindo a análise de cientistas independentes”, completa Guimarães. Mas…

O artigo não comprova benefícios da vacina — e está sendo questionado

“Ainda não dá para dizer nada sobre eficácia”, pondera Natália. Primeiro porque os estudos foram feitos com um número pequeno de pessoas, a maioria homens jovens e saudáveis. Não há problema em começar assim, porém é imprescindível replicar a estratégia em grupos maiores e mais diversificados (além de acompanhá-los por mais tempo) antes de sair distribuindo um produto de saúde para a população em geral.

Os especialistas pedem para aplicar em massa as injeções somente após a fase 3 da pesquisa clínica, que testa as doses em dezenas de milhares de indivíduos, com protocolos rígidos. Normalmente, os órgãos reguladores nem autorizam a comercialização de um medicamento qualquer antes da publicação desse tipo de estudo. “Essa etapa é indispensável para avaliar segurança e eficácia”, reforça Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).

Embora tenha anunciado que vai começar a distribuir o imunizante na sua população, a Rússia pretende conduzir um estudo de fase 3 com cerca de 40 mil voluntários de diversos países, inclusive o Brasil. O Governo do Paraná já firmou um acordo para isso, mas não submeteu a proposta do estudo à aprovação da Agência Nacional da Vigilância Sanitária (Anvisa).

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Outra limitação das pesquisas disponíveis com a vacina russa é a de que não houve um grupo controle tomando placebo ou uma vacina para qualquer outra doença. E só a partir desse tipo de comparação que dá para chegar à verdadeira eficácia da vacina. “Basicamente, observa-se como o corpo responde à formulação em teste e a outro agente. Isso para verificar se há diferenças”, comenta Guimarães.

E agora vem uma questão mais sensível. No mesmo dia em que o governo russo anunciou a liberação da vacina, 19 cientistas de diferentes países assinaram uma carta questionando os resultados publicados no The Lancet. No texto, eles apontam resultados duplicados em vários gráficos — o que poderia sugerir uma fraude.

“É como se estivessem dizendo que alguns trechos do artigo foram copiados e colados. O ideal seria que os pesquisadores da vacina apresentassem os números brutos, não apenas na figura, para a comunidade científica avaliar e dirimir dúvidas”, destaca Guimarães.

Ciência apressada não faz bem para a saúde

Além da liberação da vacina antes da conclusão dos testes, o Centro de Pesquisas Gamaleya, fabricante do composto, promete resultados iniciais da fase 3 em poucos meses. Isso não é exclusividade desse grupo: outros laboratórios especulam fabricação em tempo recorde, enquanto governos já fazem acordos para comprar as doses aos milhões.

Mas a velocidade do desenvolvimento das vacinas deve ser encarada com uma dose de cautela, pois pode comprometer a qualidade das descobertas. “Infelizmente, a corrida não é mais apenas científica, virou comercial e política, o que é preocupante”, alerta Cunha. “Não podemos correr o risco de que essas interferências nos levem a um produto perigoso ou pouco eficaz, que comprometa a credibilidade das vacinas como um todo”, conclui o médico.

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