A minha história (e provavelmente a sua) deve muito aos médicos Ugur Sahin e Özlem Türeci. Quando a prefeitura da minha cidade anunciou a terceira dose da vacina contra o coronavírus para a minha faixa etária, me desloquei pontualmente até o posto agendado para tomar o tão falado imunizante da Pfizer, o primeiro no mundo a ser aprovado em larga escala com uma tecnologia inédita e dono de uma das maiores taxas de eficácia diante da Covid-19.
O nome da farmacêutica americana ganhou a boca do povo, mas quem está por trás da inovação sem precedentes na história da medicina é esse casal alemão, ambos filhos de pais turcos e criadores da empresa de biotecnologia BioNTech, sediada em Mainz, uma cidade com pouco mais de 215 mil cidadãos na Renânia.
Quem ler A Vacina (Intrínseca), do jornalista britânico Joe Miller (clique aqui para comprar), que teve o privilégio de cobrir de perto o desenvolvimento em tempo recorde (mas sem pular etapas) do produto, vai entender, com detalhes e bastidores, por que Ugur e Özlem não só ajudaram a salvar milhões de vidas como revolucionaram a ciência médica e, não duvido, um dia podem ganhar um prêmio Nobel.
A Vacina
Autor: Joe Miller
Editora: Intrínseca
Páginas: 320
Essa é uma história que não começou com a pandemia nem tem início com inimigos virais. O ponto de partida é a busca por um tratamento diferenciado contra o câncer lançando mão de uma técnica sofisticada e baseada numa polivalente molécula, o RNA mensageiro (ou mRNA).
(Parênteses para uma explicação ou recordação mais técnica: o RNA mensageiro é aquela peça do nosso maquinário genético que permite que as instruções codificadas no DNA sejam transformadas, de fato, em proteínas para formar os tecidos e cumprir as mais variadas funções dentro do organismo.)
Özlem e Ugur se conheceram no início da carreira numa enfermaria de tratamento oncológico. Foi aí que brotou a semente do casamento e de uma parceria para encontrar uma forma mais eficiente de derrotar tumores.
Anos e anos de estudo em imunologia e biologia molecular − os dois são assumidamente nerds − levaram o par a apostar no mRNA como uma plataforma inovadora contra a doença.
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A ideia, resumidamente, é a seguinte: vamos usar essa pecinha para instruir as células de defesa do corpo a reconhecer e atacar com precisão o tumor. Essa era a missão número 1 da BioNTech, que mantém pesquisas clínicas animadoras testando essa tática em pacientes com câncer avançado.
Mas, como narra Miller, apareceu uma doença respiratória misteriosa na China que viraria o mundo do avesso. E Ugur sacou com antecedência, ainda em janeiro de 2020, que a coisa poderia se transformar em pandemia e deixar a humanidade à mercê. Daí veio o estalo de criar uma vacina para o novo vírus. Uma vacina à base de mRNA.
A Vacina exibe, num ritmo que mexe até com o fôlego da gente, como foi esse percurso desde que o casal se alinhou com a companhia sob a sua direção, que já tinha um pequeno departamento de doenças infecciosas, para colocar a serviço da humanidade um imunizante capaz de deter o patógeno.
Um trabalho árduo para o time da BioNTech que, em menos de um ano e sem deixar de cumprir nenhuma fase do protocolo de segurança e eficácia em pesquisa, deu origem a uma vacina que quebrou recordes − primeiro produto à base de mRNA aprovado clinicamente e imunizante com maior número de aplicações em campanhas pelo mundo.
E o curioso: foi também o primeiro medicamento da empresa alemã a superar o muro dos experimentos e ganhar o mercado. Não é à toa que a BioNTech, que tinha uma dívida de meio bilhão de euros antes da pandemia, obteve uma receita de 16 bilhões em 2021.
Mas e a Pfizer?
Joe Miller demonstra no livro que essa é também uma história de parcerias que vão além dos laços de família. Entre tantos cientistas que contribuíram para a tecnologia do mRNA se tornar viável para uso em humanos, merece menção pelo menos a bioquímica húngara Katalin Karinkó, pioneira na área e autora de uma sacada para impedir reações adversas da molécula ao penetrar no nosso corpo − outra candidata ao Nobel.
E, claro, há os acordos com governos e as parcerias industriais e corporativas. É aí que entra a Pfizer. A gigante sediada nos Estados Unidos tem mérito também, não só porque acreditou e investiu na proposta de Özlem e Ugur como viabilizou a produção e os testes em larga escala. Sem a Pfizer eu não teria tomado aquela terceira dose (e, felizmente, até hoje não tive Covid-19).
A vacina que hoje é a única aplicada também em crianças no Brasil funciona justamente levando instruções para nossas células produzirem, recorrendo à metáfora de Miller, um “cartaz de procura-se” contra o coronavírus.
O organismo orquestra uma resposta de defesa prévia e, ao travar contato com o Sars-CoV-2, não deixa o patógeno se espalhar e tomar conta da casa − reduzindo barbaramente episódios graves e óbitos.
(Parênteses histórico: para ampliar a produção da vacina e dar conta da crescente demanda, a BioNTech comprou uma fábrica de outra farmacêutica em Marburg, na Alemanha. A cidade ficou famosa no final dos anos 1960 porque, em um laboratório, cientistas se contaminaram acidentalmente com tecidos de macacos usados em experiências e pegaram uma doença hemorrágica nova para o ser humano, cujo agente infeccioso foi batizado de vírus de Marburg. Outro vírus colocaria a cidade em evidência décadas depois, mas com um desfecho mais feliz).
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O jornalista, correspondente do Financial Times na Alemanha, explora, além dos meandros, proezas e desafios técnicos da empreitada, o fator humano que tornou a vacina possível.
É um case de como a globalização e a interação entre povos e culturas conseguem chegar a soluções diante de impasses terríveis. Simboliza isso a aliança entre Ugur Sahin, um alemão de origem turca e muçulmana, com o CEO da Pfizer, Albert Bourla, um judeu nascido na Grécia.
Özlem e Ugur não foram só protagonistas de um feito que vem salvando incontáveis vidas nesta pandemia. Eles provaram que a tecnologia de mRNA tem tudo para revolucionar a medicina, permitindo elaborar imunizantes para moléstias como tuberculose, malária e HIV, e, de volta às origens, colocando em outro patamar o tratamento do câncer. Eles fazem questão de dizer que estamos apenas no começo dessa jornada.