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O que é imunidade coletiva e quando ela pode ser atingida no coronavírus?

A imunidade de rebanho (quando o número de pessoas imunes a uma infecção chega a um nível que freia sua disseminação) gera dúvidas na pandemia de Covid-19

Por Chloé Pinheiro
Atualizado em 28 ago 2020, 19h17 - Publicado em 13 ago 2020, 19h52
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  • Logo no início da pandemia de coronavírus (Sars-CoV-2), o termo “imunidade de rebanho” ganhou destaque. Esse fenômeno, também chamado de imunidade coletiva, surge quando muitas pessoas já estão imunes contra uma infecção e, com isso, dificultam a ampla transmissão de um vírus. Em resumo, é tanta gente com as defesas levantadas contra um agente infeccioso que ele não consegue encontrar os poucos hospedeiros ainda suscetíveis — e, com isso, sua circulação cai consideravelmente.

    A imunidade coletiva pode ser atingida tanto com programas amplos de vacinação quanto por meio da infecção direta da população (nesse último caso, a um custo de vidas intolerável, como veremos adiante). No caso da Covid-19, modelos matemáticos iniciais sugeriam que esse patamar seria alcançado somente quando entre 60 e 70% dos indivíduos de uma comunidade tivesse desenvolvido anticorpos.

    Mas um novo trabalho, conduzido por pesquisadores brasileiros, portugueses e ingleses, sugere que seria possível alcançar uma imunidade coletiva com menos de 20% da população infectada. Para chegar a esse número, os cientistas usaram um modelo matemático que leva em conta a heterogeneidade da população. Isto é, o fato de que nem todos têm o mesmo risco de contrair a doença. Os cálculos anteriores consideravam que todos estavam suscetíveis na mesma medida.

    “Nosso modelo considera tanto o risco individual, que é determinado, por exemplo, por fatores biológicos, quanto a exposição de cada um. Nem todos têm o mesmo nível de contato com outras pessoas”, explica Rodrigo Corder, engenheiro e pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP).

    A conta foi ancorada a partir de dados de nações europeias que já passaram pelo pico da pandemia: Bélgica, Inglaterra, Espanha e Portugal. Nelas, o limiar de imunidade coletiva teria ficado entre 10 e 20%. “O modelo que criamos coincidiu com a evolução real da doença, inclusive na previsão de segundas ondas menores, que de fato ocorreram em alguns dos países que avaliamos”, completa Corder.

    O achado está disponível na medRxiv. Essa plataforma reúne estudos que ainda não passaram por revisão de outros especialistas — e, por isso, devem ser interpretados com uma dose extra de cautela. De qualquer forma, o artigo levantou muita polêmica por dar a impressão de que seria possível voltar à vida “normal” bem antes do esperado.

    O principal ponto questionado por boa parte da comunidade científica é o real valor prático dessa investigação. “Esses modelos matemáticos são importantes e feitos por cientistas competentes. Mas há um caráter bem especulativo nessa fase. Estamos falando de suposições”, comenta o físico Roberto Kraenkel, professor da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) e membro do Observatório Covid-19, projeto que compila dados da pandemia.

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    Paulo Lotufo, epidemiologista da USP, vai além: “É temerário fazer projeções assim para uma doença tão heterogênea quanto a Covid-19, que tem uma boa parte de assintomáticos, casos graves, mortes súbitas. São nuances que o modelo matemático não consegue distinguir.

    De acordo com a microbiologista Natália Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência, ainda não sabemos o suficiente sobre algumas das características que influem na capacidade de transmissão do novo coronavírus. “Não conhecemos os parâmetros exatos para calcular a imunidade coletiva, principalmente a adquirida pelo curso natural da infecção. Nós nem sabemos se quem a contraiu estará de fato imune, ou quanto tempo dura a proteção promovida pelo contágio”, elenca.

    Ou seja, esse trabalho até traz uma hipótese positiva, porém ainda longe de estar consolidada.

    Tem mais: no caso da Covid-19, é provável que a tal imunidade coletiva gere uma queda no número de casos e mortes, mas não o fim do problema. “Ao atingir esse patamar, as novas infecções continuam acontecendo, embora em ritmo mais lento”, continua Kraenkel.

    O engenheiro Rodrigo Corder, um dos autores da pesquisa que citamos, concorda. “O limiar que propomos não indica que a transmissão foi interrompida. E, se retirarmos medidas como o distanciamento social e o uso de máscaras de maneira abrupta, a transmissão pode se prolongar muito mais”, alerta.

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    Faz sentido: o índice de imunidade de rebanho tende a ser menor em uma comunidade na qual parte das pessoas está isolada e tomando diversas medidas de precaução, que dificultam o alastramento do Sars-CoV-2. Já em uma situação onde todo mundo volta para as ruas de maneira indiscriminada, essa taxa provavelmente será maior — uma vez que o coronavírus terá mais facilidade para invadir organismos suscetíveis.

    Imunidade coletiva ou mortes dos suscetíveis?

    Outro ponto debatido é a razão por trás do platô no número de mortes e casos no Brasil. “O que estamos vendo hoje em algumas cidades brasileiras é uma redução não porque atingimos a imunidade coletiva, mas porque boa parte das pessoas mais suscetíveis a morrer ou ter versões graves da doença já foi contaminada”, destaca Lotufo.

    Para ele, a imunidade coletiva existe e também chegará para a Covid-19. Contudo, ela não deve ser alcançada naturalmente, porque o custo disso viria a uma quantidade alarmante de mortes. “O ideal é atingir esse número artificialmente, com uma vacina eficaz”, pontua.

    Vejamos o caso de Manaus, cujos dados suportariam a teoria do limiar mais baixo da imunidade coletiva. Depois de um pico de infecções e sem implementação efetiva de medidas preventivas, a doença arrefeceu e os inquéritos sorológicos apontam que cerca de 10% da população teve contato com o vírus. Só que o custo disso foi um aumento de 500% no número de óbitos em comparação ao mesmo período de 2019, e o colapso da saúde pública do estado.

    Em webinar promovido pela Agência Fapesp, o epidemiologista da USP Marcos Amaku lembra que, mesmo que esses 20% sugeridos pelo estudo sejam reais, será preciso que pelo menos 8 milhões de pessoas se contaminem só no estado de São Paulo. Hoje, temos cerca de 630 mil casos confirmados.

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    O que é um modelo matemático

    Basicamente, é uma espécie de simulação de um evento da vida real. Diversos parâmetros numéricos escolhidos pelos experts formam uma equação para tentar responder uma questão.

    “No caso das doenças infecciosas, usamos como parâmetro, por exemplo, a taxa de transmissão do vírus, além de fatores como densidade demográfica e características populacionais”, explica Corder. “Assim, tentamos investigar os mecanismos que influenciam eventos reais”, continua.

    Ocorre que alguns fatores na equação não passam de hipóteses que são assumidas pelos matemáticos (e tomadas como realidade no modelo). É o caso do chamado coeficiente de variação desenvolvido pelo grupo de Corder — o número que simboliza o nível de heterogeneidade da população. “Averiguamos que, quanto mais heterogênea ela for, menor é o limiar de imunidade coletiva a ser atingido para conter a pandemia”.

    Essa linha de raciocínio já era usada pelo grupo do ICB-USP há anos para avaliar a transmissão de malária na Amazônia, por exemplo.

    A questão da imunidade desenvolvida contra o novo coronavírus

    Determinar quem está protegido da Covid-19 ainda é um grande desafio. Primeiro porque a maneira como o organismo se defende do coronavírus não é totalmente compreendida — para alguns recuperados, por exemplo, os anticorpos parecem ser menos relevantes na história do que outros mecanismos de defesa do organismo.

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    Em segundo lugar, os cientistas ainda tentam descobrir se há uma possibilidade de reinfecção pelo Sars-CoV-2 e por quanto tempo o corpo estaria protegido após tomar uma vacina ou se curar da infecção. E incertezas assim complicam ainda mais os cálculos, que buscam encontrar a porcentagem exata da imunidade coletiva.

    Fora isso, os exames que avaliam a presença de anticorpos não são 100% precisos. “Achados sugerem que os anticorpos produzidos para combater a infecção diminuem com o tempo. Então, podemos ter pessoas imunes, mas com o exame negativo”, explica João Prats, infectologista da BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo.

    A situação brasileira também impacta nas projeções. “Como estamos no meio da pandemia, é difícil fazer inferências mais precisas aqui. Na Europa, onde os surtos começaram antes, temos dados mais robustos”, comenta Corder.

    Moral da história

    Modelos matemáticos como os que citamos são um baita recurso da ciência para projetar um futuro incerto. “Eles nos ajudam a entender a doença, mas, por si sós, não servem para embasar decisões de políticas públicas”, alerta Natália.

    Não dá para dizer que medidas como o distanciamento social e o uso de máscaras podem ser abandonadas quando atingirmos um número “X” de pessoas imunes ao coronavírus. Pelo contrário: o abandono dessas táticas exigiria um número maior de pessoas infectadas para atingirmos a imunidade coletiva.

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    “Não existe uma porcentagem mágica que vá nos liberar da quarentena. O momento de flexibilizar regras é quando o número real de casos e óbitos estiver caindo de maneira sustentável. O achado sugere que talvez isso aconteça antes do previsto, mas ainda não sabemos quando”, conclui a bióloga.

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