Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), um dos principais problemas da atualidade é a resistência bacteriana. Em linhas gerais, ela acontece quando a bactéria se adapta, tornando-se praticamente imune à medicação que tinha como objetivo eliminá-la. Ou seja, vai ficando cada vez mais difícil combatê-la.
Se não resolvida a tempo, essa questão poderá ser a causa da morte de mais de 10 milhões de pessoas no mundo nos próximos 30 anos. Afinal, não teremos mais remédios eficientes para lidar com esses micróbios.
Para conscientizar a população sobre essa luta foi criada a Global Respiratory Infection Partnership (Grip). A iniciativa visa promover o uso sustentável dos antibióticos, que é a questão mais relevante nesse contexto.
A seguir, entenda mais sobre a resistência bacteriana e quais hábitos podem ajudar a barrá-la.
Como surgiu esse problema?
Ele começou a ser observado a partir da descoberta do primeiro antibiótico, a penicilina, em 1928. Foram necessários apenas dois anos para que as bactérias evoluíssem a ponto de ficarem mais resistentes à ação desse medicamento. A situação foi piorando com o aparecimento de fórmulas semelhantes utilizadas de maneira descontrolada, o que deu espaço a mutações cada vez mais agressivas.
Hoje, o maior perigo está nas UTIs dos hospitais, segundo o infectologista Fernando Bellissimo Rodrigues, professor do departamento de Medicina Social da USP de Ribeirão Preto. “Observamos isso entre as vítimas da Covid-19 que permaneceram internadas por mais de três meses e acabaram morrendo não da doença, mas por infecções hospitalares graves, sem tratamento disponível”, exemplifica o médico.
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A OMS divulgou uma lista de substâncias que estão sendo superadas por essas bactérias, mas especialistas alertam que a solução não está em criar medicamentos inéditos. “A indústria não consegue acompanhar o desenvolvimento desses micro-organismos, porque elaborar novas fórmulas leva tempo, é caro e dá pouco retorno financeiro”, explica Rodrigues.
O que fazer, então?
A melhor estratégia seria frear o surgimento dessas superbactérias. A primeira medida para isso já vêm sendo praticada por médicos, que é receitar antibióticos apenas quando é extremamente necessário. Se antes era comum adotar esse tipo de protocolo para qualquer infecção, hoje a avaliação deve ser mais criteriosa.
Uma infecção de garganta, por exemplo, pode ser causada por vírus, e não bactéria. “Nesses casos, é indicado tratar o alívio dos sintomas, como a febre, a dor e o mal-estar”, ensina Geraldo Druck Sant’Anna, especialista convidado pelo Grip e professor de otorrinolaringologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, da Santa Casa da capital gaúcha.
Os antibióticos são bem-vindos apenas para doenças de origem bacteriana e, quando receitados, precisam ser utilizados em doses corretas, dentro do prazo e nos horários indicados pelo médico.
Para ter ideia, tomar os remédios em horários errados abre uma janela de oportunidade para que a bactéria sobreviva à ação do medicamento e se desenvolva. Para diminuir esses vácuos, a orientação recebida pelos médicos é reduzir o tempo de prescrição. “Antes, tomava-se por três semanas. Agora, são cinco dias, dependendo de cada caso. Para infecção urinária, há opções de doses únicas, por exemplo”, esclarece Rodrigues.
“Se o uso do antibiótico é indiscriminado e sem controle, existe uma tendência natural para que a resistência bacteriana ocorra. Se estivermos falando de bactérias mais benignas, as consequências podem não ser tão sérias. Mas, no caso de micro-organismos mais agressivos, o resultado pode ser trágico”, alerta Sant’Anna.
Médicos já estão alertas sobre essa questão. Porém, de acordo com o professor da UFCSPA, é comum que, dentro do consultório, os pacientes insistam para receber a receita de antibióticos na esperança de resolver mais rápido uma infecção. É preciso quebrar essa corrente.
Herança da Covid-19: vacinação e higiene são armas contra superbactérias
Há outros hábitos da população capazes de ajudar a impedir o desenvolvimento de superbactérias. Lavar bem as mãos e utilizar álcool em gel, legados da pandemia do coronavírus, estão entre eles.
“A higienização tem o papel de prevenir doenças respiratórias e diarreias”, aponta Rodrigues. É fácil fazer a conta: quanto menos pessoas ficarem doentes, menos bactérias vão circular por aí.
Já nos hospitais, a prática impede que pacientes e equipamentos sejam contaminados e que os micro-organismos se utilizem desse ambiente para evoluir.
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A cultura da vacinação também é primordial. “Temos diversos imunizantes. Um dos mais importantes protege contra a pneumococo, bactéria responsável pela pneumonia e outras doenças respiratórias. Ela pode provocar internações e o surgimento de cepas mais resistentes”, pontua o infectologista.
Cuidando das bactérias ‘do bem’
Quando os antibióticos entram em cena, eles não miram somente nas bactérias causadoras de doenças. Esses medicamentos acabam afetando até aqueles micro-organismos que existem para garantir o bom funcionamento do organismo.
“As chamadas ‘bactérias boas’, que habitam a pele, a boca, o intestino e a flora vaginal das mulheres, por exemplo, podem ser atingidas pelo remédio, levando a efeitos colaterais”, explica Sant’Anna.
A moda de priorizar produtos antissépticos é outra forma de matar os micróbios benéficos pra gente. “Quem está saudável deve evitar essas soluções. Não é preciso insistir em enxaguantes bucais quando não há o diagnóstico de gengivite nem usar sabonete íntimo frequentemente se não existe risco de uma doença ginecológica”, exemplifica Rodrigues.
A questão da agropecuária
Não está só na mão dos médicos e de seus pacientes evitar o uso indiscriminado de antibióticos. Essa classe de substâncias também é demasiadamente empregada pela veterinária, zootecnia e agricultura.
“Cerca de 60% a 80% dos antibióticos produzidos no mundo são voltados para a agropecuária”, conta Rodrigues. Os produtos são aplicados com diversas finalidades, que vão desde impedir o adoecimento do grão de café até estimular o crescimento do frango. “Já há outras soluções hoje, sendo possível limitar o uso desnecessário dessas ferramentas”, informa Rodrigues.
O consumo de antibióticos por humanos, animais e plantas também faz com que essas substâncias sejam liberadas no meio ambiente, contaminando solo e água. Assim, elas podem entrar em contato com bactérias capazes de evoluir. Isso só reforça que, quanto menos remédio circulando por aí de forma descabida, menos chance de esses micróbios se transformarem em ameaças mortais.