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Nova era para os transplantes

Há quase dez vezes mais pessoas esperando por um órgão no Brasil do que doadores viáveis a cada ano. Mas técnicas modernas prometem suprir a demanda

Por Mauricio Brum e Caroline Guarnieri
6 jun 2022, 10h29
Ilustração de uma fábrica produzindo diferentes órgãos do corpo humano
A área dos transplantes também evoluiu muito na Medicina. (Ilustração: Jonatan sarmento/SAÚDE é Vital)
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Com uma doença cardíaca terminal e inelegível para receber um coração humano como transplante, o americano David Bennett não tinha escolha: ou aceitava um fim mais precoce ou ajudava a medicina a fazer história. Em janeiro deste ano, ele topou participar da revolução. No hospital da Universidade de Maryland, tornou-se a primeira pessoa a receber um coração geneticamente modificado de um porco — e sobreviveu por mais dois meses.

Bennett não foi o único a passar por um xenotransplante, nome do procedimento quando o órgão vem de outra espécie. No fim de 2021, uma paciente com morte cerebral recebeu, em caráter experimental, um rim suíno nos Estados Unidos.

A técnica por trás desses dois marcos é pesquisada há décadas, mas só agora os cientistas acreditam que estamos a ponto de superar as últimas barreiras da rejeição do corpo humano — o maior obstáculo na prática — e tornar os xenotransplantes uma alternativa viável para quem aguarda na fila de espera por um órgão.

“A sobrevida de 61 dias de Bennett já representa um grande sucesso”, afirma o cirurgião Silvano Raia, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP). Ele lembra que o americano só recebeu o coração após três meses dependendo de uma máquina de oxigenação por membrana extracorporal, ou ECMO, período em que os demais órgãos começaram a entrar em falência progressiva.

“Isso não permitiu identificar precisamente se a causa da morte foi rejeição ou falência de múltiplos órgãos”, esclarece. Aos 91 anos, Raia é um dos pioneiros nessa área da medicina.

Na década de 1980, fez o primeiro transplante de fígado entre pessoas vivas no mundo. Hoje, coordena junto à geneticista Mayana Zatz, também da USP, um projeto que busca transformar em realidade os xenotransplantes suínos no Brasil. Essa é uma das frentes mais promissoras e avançadas para contornar a complexa demanda por órgãos no país e lá fora.

Gráfico com numeros de transplantes
Há uma necessidade crescente por transplantes no país. (Ilustração: Jonatan Sarmento/SAÚDE é Vital)
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A tentativa de substituir as partes avariadas do corpo humano utilizando outras que pertenceram a um ser vivo — normalmente, uma pessoa — não é exatamente nova na história. Desde a Antiguidade há relatos de enxertos de pele e outros tecidos.

No século 19, vieram experimentos com a substituição de glândulas como a tireoide. E mesmo o uso de animais como possível fonte alternativa vem sendo testado há tempos. Data de 1905 o registro de uma operação que transferiu um rim de coelho para salvar uma criança francesa.

Essas experiências pioneiras, porém, terminavam em morte poucas horas ou dias após o transplante. Afinal, quanto mais complicado o procedimento, maiores as limitações. Em paralelo, quebrava-se a cabeça para encontrar maneiras de preservar o órgão do doador, que, ao longo dos anos, passou a ser extraído na maioria das vezes de uma pessoa morta.

Apesar dos entraves técnicos, a segunda metade do século 20 foi marcada por avanços científicos e operacionais, propiciando um aumento na oferta e na demanda de transplantes de coração, fígado, pâncreas e pulmão.

Ainda assim, uma das maiores preocupações existentes até hoje gira em torno da rejeição do órgão pelo corpo do receptor. “Do ponto de vista tecnológico, um dos desafios atuais é a melhora das terapias imunossupressoras que controlam a rejeição a fim de termos menos efeitos colaterais e maior longevidade para os pacientes”, expõe o nefrologista Roberto Ceratti Manfro, chefe da Unidade de Transplante Renal do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

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Só quando as barreiras imunológicas começaram a ser vencidas, lá na década de 1950, é que o transplante de órgãos passou a acumular sucessos.

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Uma forma inicial de reduzir a rejeição foi a doação de órgãos por familiares, geneticamente próximos do receptor. Mais tarde, com maior entendimento da imunidade, vieram medicamentos imunossupressores, caso da ciclosporina.

A conservação do órgão entre a retirada e o implante também ganhou novas técnicas, como a perfusão: em vez do isopor com gelo e fluidos vitais, uma máquina ajuda a manter o tecido resfriado e nutrido.

“Isso aumentou muito o tempo que você consegue esperar com o órgão fora do corpo do doador, e também permite fazer análises para confirmar que ele está com boa qualidade para ser transplantado”, explica o pneumologista José Eduardo Afonso Júnior, coordenador do Programa de Transplantes e Captação de Órgãos do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.

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Fora a ciência em jogo, o transplante de órgãos mobilizou questões sociais e políticas públicas. Leis regulamentando a prática e investimentos em logística foram cruciais para elevar o número de doadores e a capacidade de levar os órgãos a quem mais precisa.

No Brasil, a criação do Sistema Nacional de Transplantes, no fim dos anos 1990, é considerada um dos momentos mais importantes dessa história — o SUS tornou-se referência mundial na área.

“Antes, distribuíamos fígado por ordem de entrada na fila. Hoje é pela gravidade do doente que está na lista, um modelo mais eficiente e justo”, contextualiza o cirurgião Ben-Hur Ferraz Neto, professor da USP e consultor do Ministério da Saúde.

As campanhas de conscientização também ajudaram a reduzir o tabu e a recusa em se tornar um doador. Mesmo assim, no ano passado, 42% das famílias negaram ceder órgãos de um parente com morte encefálica — 2 642 potenciais doadores a menos, em um país com mais de 48 mil pessoas na fila de espera.

E a Covid-19 só veio plantar novas dificuldades: em 2020, a quantidade de transplantes caiu quase 30%. “Estamos ensaiando uma retomada tímida em 2022, mas ainda não atingimos os níveis anteriores à pandemia”, lamenta o nefrologista Gustavo Ferreira, presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO).

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Infográfico de como é feito um xenotransplante

O fato é que, mesmo sem pandemia, a conta não fecha. E, ainda que as negativas de ceder órgãos zerassem, as filas por um órgão seguiriam maiores que o número de novos doadores viáveis por ano.

É por isso que a ciência se esforça para obter “substitutos”, como propõem as pesquisas com xenotransplantes. Diferentes espécies foram testadas no passado, especialmente primatas, mas os suínos acabaram ganhando preferência por seus órgãos de tamanho semelhante aos nossos e pelo histórico de domesticação e convívio com a nossa espécie, o que diminui o risco de agentes infecciosos desconhecidos entrarem em campo.

Transplantes mais radicais, como o de coração recebido pelo americano David Bennett, por ora são considerados experimentais, mas implantes parciais vindos de animais, como válvulas cardíacas, já são corriqueiros na prática médica. Quanto a órgãos inteiros, é provável que os rins suínos sejam os primeiros a beneficiar seres humanos em larga escala.

“Em caso de insucesso, ainda podemos devolver o paciente à hemodiálise enquanto ele aguarda um transplante de rim homólogo [de outra pessoa]”, explica Raia.

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No segundo semestre de 2021, Jim Parsons, um americano que teve morte cerebral decretada, recebeu um par de rins de porco em um teste pioneiro com autorização da família. Ele não tinha possibilidades de recuperação, mas protagonizou um capítulo desse progresso científico — e os cirurgiões celebraram quando um dos rins funcionou e seu corpo produziu urina.

Não é qualquer suíno que vira um doador. Os animais são criados em um ambiente controlado, chamado biotério, e passam por edição genética para aumentar as chances de que o órgão seja aceito pelo corpo humano. Enquanto os experimentos seguem seu curso, será preciso estabelecer parâmetros éticos e regras claras sobre os cuidados com os bichos e a forma de distribuição dos órgãos.

Um dos pontos a debater será a ordem de prioridade para os pacientes que estão na fila quando houver essa alternativa. Pelo andar dos estudos, é provável que os xenotransplantes ofereçam, pelo menos em sua primeira geração, mais rejeição que os órgãos humanos, o que exigirá a utilização de remédios imunossupressores mais poderosos.

Ainda assim, Raia ressalta que ter essa nova opção pode ser o divisor de águas em um cenário de escassez de órgãos. “O xenotransplante oferecerá esse milagre a muitos que hoje estão inscritos na lista de espera e que podem morrer antes de serem transplantados”, afirma.

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A expectativa é que, além de rim e coração, os suínos geneticamente modificados também sejam doadores de pele e córnea — o fígado, por enquanto, não está nos planos.

E o Brasil está ajudando a escrever essa história. O governo de São Paulo assinou um termo garantindo os recursos necessários para o primeiro biotério da América Latina voltado aos xenotransplantes, abrindo caminho para implementar o método em breve no país.

Outra promessa, esta um pouco mais distante da realidade, parece saída diretamente da ficção científica: a impressão de órgãos sob medida. As estruturas seriam projetadas em modelos 3D com células geneticamente pareadas ao receptor e fabricadas em bioimpressoras.

O princípio da tecnologia já começa a ser utilizado em biocurativos para tratar a pele de queimados, em que uma cultura de células (idealmente do próprio receptor) é misturada com outras substâncias em um aparelho ultramoderno, dando origem a um tecido colocado sobre a região lesada.

A esperança, prevista para as próximas duas décadas, é que essa metodologia possa produzir órgãos inteiros, que não seriam rejeitados como estranhos pelo corpo por contarem com o mesmo DNA do indivíduo. “Costumo dizer que não serei um cirurgião que fará um transplante desses órgãos, mas eventualmente um paciente que os receberá. Isso vai vir mais rápido do que imaginamos”, avalia Ben-Hur Ferraz Neto.

Infográfico de como funciona a bioimpressão
(Ilustração: Jonatan Sarmento/SAÚDE é Vital)

 

Conquistas históricas

Avanço no conhecimento médico e nas técnicas permitiu salvar incontáveis vidas

1954
Em Boston (EUA), um transplante renal bem-sucedido entre irmãos gêmeos inaugura esse campo.

1959
Americanos fazem o primeiro transplante de rim entre doador e receptor sem parentesco. Sucesso!

1962
Estreia o uso de órgãos vindos de cadáver. O avanço dos imunossupressores permite a primeira operação exitosa.

1964
O primeiro transplante do Brasil, também renal, é realizado no Rio. Em São Paulo, ocorre outro no ano seguinte.

1967
Transplantes inéditos com órgãos de falecidos são registrados: coração, na África do Sul, e fígado, nos EUA.

1968
Dilemas exigem nova definição formal do fim da vida para permitir o uso de órgãos. Surge o conceito de morte cerebral.

1968-70
Surgem trabalhos pioneiros com transplante de coração, fígado, pâncreas e até intestino no Brasil.

1988
O brasileiro Silvano Raia faz o primeiro transplante de fígado entre pessoas vivas do mundo entre uma mãe e uma filha.

1997
É criado o Sistema Nacional de Transplantes. Com o SUS, o país se torna líder global em transplantes na rede pública.

2012
A equipe de Ben-Hur Ferraz Neto faz o primeiro transplante multivisceral (de vários órgãos) nacional em uma única sessão.

2021
Um homem americano recebe um rim suíno modificado geneticamente. Começa a era dos xenotransplantes.

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