Hemofilia: informação e acesso para os pacientes
Crianças com a doença, suas famílias e cuidadores buscam rede de apoio para acolhimento e renovação da esperança perdida pelo medo do desconhecido
A hemofilia é uma doença genética e hereditária causada pela deficiência de um ou mais fatores de coagulação do sangue que ajudam a conter hemorragias. A doença não tem cura e é necessário o tratamento por toda a vida. Estima-se que cerca de 13 mil brasileiros convivam com a doença, segundo a Federação Mundial de Hemofilia, o que coloca o Brasil em 4º lugar no ranking de países com maior número de pacientes hemofílicos.
Procurando compreender os principais desafios na rotina dos pacientes, familiares e cuidadores, a Veja Saúde, juntamente com a Federação Brasileira de Hemofilia e a Roche Farma Brasil, realizou uma pesquisa online com 65 cuidadores de crianças e adolescentes de até 16 anos com hemofilia tipo A moderada ou grave. O estudo Um Retrato da Hemofilia no Brasil teve os seus resultados publicados na última edição da revista e também apresentados durante o Fórum Nacional de Pessoa com Hemofilia – Desafios na Primeira Infância, que ocorreu no dia 1º de junho, em Brasília.
O encontro foi promovido pelo Instituto Brasileiro de Ação Responsável, em parceria com a Roche Farma Brasil, e contou com a participação de especialistas no tema, com o objetivo de discutir dados e levantar questões para que os cuidados de pessoas com hemofilia, em especial na primeira infância, sejam desmistificados e suas famílias recebam o apoio necessário para enfrentar os desafios que a doença pode trazer. O propósito é somar nas ações para crianças no enfrentamento da hemofilia no país e promover discussão de melhorias nas políticas públicas, sociais e econômicas, incentivando ambientes propícios ao diálogo sobre a questão.
UM RETRATO DA HEMOFILIA NO BRASIL
Para Clementina Moreira Alves, presidente do Instituto Brasileiro de Ação Responsável, a hemofilia é
“uma causa pela qual todos nós, atores na área da saúde, somos responsáveis”, partindo da premissa de que cada órgão, público e privado, deve agir de acordo com suas possibilidades, e que a sociedade em geral deve auxiliar na propagação de informação acerca do tema. “Nós temos avanços na medicina, nós temos diferentes formas de cuidar, nós temos profissionais competentes. O que nós temos que fazer agora é juntar todos os elos para ter um maior alcance”, afirmou.
A falta de informação é uma das maiores vilãs no alcance da qualidade de vida para a criança com hemofilia e para quem a acompanha. Segundo o estudo feito, 82% dos participantes acreditam que é necessário melhorar a qualidade de compartilhamento das informações sobre o que é a hemofilia e 77% sobre as informações acerca dos tratamentos da doença.
Mas não para por aí. A relação familiares/cuidadores versus as demais pessoas da sociedade também é dificultada pela falta de comunicação e 86% dos membros da pesquisa apontaram que a troca de informações com a sociedade sobre como é conviver com hemofilia deve ser aprimorada. Acontece que algumas famílias acabam enfrentando restrições financeiras, já que alguns familiares, por exemplo, acabam por abandonar seus empregos devido à necessidade de frequentemente acompanhar seus filhos nos hemocentros para aplicação das infusões necessárias para o manejo da doença. “O preconceito e a falta de conhecimento estão muito ligados”, afirmou Maísa Sônego Alves, pesquisadora de mercado e marketing e representante da Veja Saúde no encontro.
As escolas são outra barreira no desenvolvimento adequado dos pacientes. E os números coletados pela pesquisa só evidenciam isso:
- 28% responderam que os filhos não frequentam a escola
- 96% das escolas não têm um profissional treinado para acompanhar ou socorrer as crianças com hemofilia, 62% dos entrevistados julgam isso como um fator importante
- 63% apontam a falta de conhecimento da escola para acolher e incluir a criança como uma barreira ao bem-estar do paciente
Não é raro que escolas, ao serem informadas sobre o diagnóstico da criança, rejeitem a matrícula justamente por não estarem preparadas para lidar com as intercorrências da doença, seja de forma pedagógica ou nos primeiros socorros.
INDEPENDÊNCIA IMPEDIDA
A hemofilia é uma realidade que, pelos mais variados motivos, pode acabar contendo a independência das crianças e adolescentes. Sessenta por cento dos pesquisados destacaram que gostariam, sim, que os pacientes tivessem mais liberdade para fazer exercícios físicos, brincar e viajar, mas o receio de que a pessoa possa ter sangramentos se torna inimigo.
Por esse motivo, se enfatiza mais uma vez a importância do compartilhamento de informações, preparando melhor a sociedade para o acolhimento dessas crianças e também para o avanço nos cuidados adequados, contendo os riscos.
Esse foi um dos tópicos levantados pela dra. Melina Swain, médica, hematologista e hemoterapeuta da Fundação Hemocentro de Brasília (FHB) e do Hospital da Criança de Brasília José Alencar (HCB). A médica reforçou a importância de cuidados personalizados: “dessa forma a gente vai conseguir dar possibilidades ao paciente”.
A especialista também foi categórica em dizer que a informação é a maior aliada para conquistar apoio, acolhimento e qualidade de vida, diminuindo assim também os traumas a que ficam expostos, inclusive os pais, que chegam a pensar em maus-tratos e se culpam ao se deparar com os primeiros sinais físicos da doença. Como médica pediatra, ela promoveu o ideal de que “as crianças têm o direito de explorar o mundo”.
Os sintomas da hemofilia podem aparecer desde os primeiros meses do paciente e, pela falta de conhecimento, podem causar desespero em quem recebe o diagnóstico. Muitos familiares relatam que são questionados por médicos e até mesmo por assistentes sociais devido aos hematomas nas crianças, que vão desde manchas roxas a sangramentos espontâneos.“É muito difícil às vezes a família aceitar o diagnóstico. Muitas vezes passa pela falta de informação”, explica a doutora.
DIFICULDADES NOS CUIDADOS COM A DOENÇA
Melina ressalta que um acolhimento multidisciplinar no centro tratador é essencial no processo de comunicação com as famílias dos pacientes. “Uma coisa é a informação que o médico dá e outra coisa é essa troca de mães, de família”.
A adesão ao tratamento é um fator de extrema importância para a qualidade de vida dos pacientes. O controle da doença e a avaliação regular nos hemocentros são etapas do dia a dia que impactam em todos os aspectos da vida dos pacientes. Infelizmente, muitas vezes, a adesão acaba sendo dificultada por diversos fatores. Entre os pesquisados, 62% indicaram a forma de aplicação como uma das principais dificuldades.
“Eu falo para os pais que a prevenção aos sangramentos é o que vai fazer seu filho brincar, pular, correr sem se machucar. Claro que isso é muito fácil de falar, mas é difícil viver”, relata a hematologista.
OS DESAFIOS DO COTIDIANO
Tânia Maria Onzi Pietrobelli, presidente da Federação Brasileira de Hemofilia, mãe de um homem com hemofilia, luta por esta causa desde que recebeu o diagnóstico do filho, há mais de 40 anos. Ela contou que, antes da notícia, chegou a questionar a babá sobre os maus-tratos aos quais pensou que a criança havia sido exposta, inclusive incentivada pelo pediatra. Após muitos exames, veio o reconhecimento de que não havia culpados, e assim iniciou-se a busca pela qualidade de vida e pelos cuidados corretos para seu filho, hoje já adulto. Esta é a busca diária da presidente da FBH: trazer de volta a esperança dos pais das crianças com hemofilia, além de provocar a sociedade para obter o apoio do Congresso no aperfeiçoamento das políticas públicas sobre o tema. Ela foi, inclusive, uma das grandes vozes que, em 2011, contribuíram para garantir a profilaxia das crianças, e em seguida, em 2012, a garantia do acesso aos cuidados adequados de todos os brasileiros com hemofilia pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Devido ao grande número de pessoas com hemofilia no país, o Brasil é um dos poucos contemplados por políticas públicas para o tratamento da doença. Segundo o Ministério da Saúde, para 2022 está previsto o orçamento de 1,8 bilhão de reais para os cuidados adequados com a doença.
O QUE DEVE MUDAR?
Tânia Pietrobelli afirma que ainda há o que melhorar, desde os cuidados, educação e, novamente, o acesso à informação. “Nos tornamos uma referência mundial. Nós temos que ter credibilidade, é com essa credibilidade que se consegue avançar”, disse. A presidente da FBH defende que a união das diversas esferas do poder é essencial para que se alcance cuidados menos invasivos, mais recursos tecnológicos e financeiros, além da parceria do Brasil com países desenvolvidos que já tratam a hemofilia com menos tabus e preconceitos. Ela ainda ressalta que, com a promoção de políticas públicas sustentáveis, que garantam a evolução física, psicológica e social dos pacientes com hemofilia, inclusive com o empoderamento da família por meio de ações integradoras, é possível diminuir sequelas nos pacientes.
Tânia acredita que a parceria entre o legislativo, órgãos públicos competentes, como Ministério da Saúde, Secretarias de Saúde (estaduais e municipais), prefeituras e corpo acadêmico (hospitais universitários e clínicas de estágio das instituições educacionais), é essencial para o progresso da luta pelos pacientes, e fará com que haja mais acesso à informação, e cobertura de todas as regiões do Brasil, desde as capitais até comunidades ribeirinhas ou de difícil acesso no interior do País.
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