Você já parou para pensar por que, em 2016, um filtro com cara de cachorrinho do Snapchat fez tanto sucesso? E como essa intervenção de brincadeira nas fotos compartilhadas pelas redes lançou uma moda, a das “lentes virtuais”, em alta até hoje?
Mais que colocar orelhas felpudas, focinho e língua para fora, o tal filtro suavizava imperfeições como olheiras e manchas na pele, alargava um pouco os olhos, afinava o rosto e esculpia sua porção inferior.
E, se não bastasse, ainda escondia o nariz, uma região incômoda para muita gente porque se destaca demais nas selfies. Em resumo, todo mundo ficava “bonito” com a lente, e ela viralizou. Foi um fenômeno — e o pontapé para os filtros ditarem um novo padrão de beleza.
“A consciência da autoimagem vem da relação entre nós e os outros, e a cultura do mundo virtual é baseada em curtidas e na monetização das imagens”, analisa o psicólogo Cláudio Paixão, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“Quanto mais se manipulam as fotos e elas são mais bem-aceitas, mais se reforça o valor daquele padrão. Se um filtro que modifica o rosto se propaga como algo bonito, a percepção de beleza das pessoas vai sendo moldada por ele”, explica.
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E é assim que o mundo digital passa a se confundir com o real. Os filtros focados no embelezamento se multiplicaram e as tendências nas redes passaram a impor regras fora das telas.
Um estudo da Academia Americana de Cirurgia Plástica Facial revela que 55% das pessoas que fizeram plástica no nariz em 2017 tinham o objetivo de ficar mais bonitas em selfies.
Mas o que foi se desenhando a partir daí é que o novo padrão para o rosto podia ir muito além de uma “correção” pontual. Talvez ele exigisse uma série de procedimentos. Nascia, dessa forma, o conceito de harmonização facial.
Na verdade, o que se convencionou chamar de harmonização facial é um conjunto de técnicas não cirúrgicas para remodelar as feições do rosto.
Geralmente são procedimentos bem menos complexos que uma plástica e com resultado imediato, o que contribuiu bastante para sua popularização mundo afora.
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Dentro do pacote, uma das soluções mais disseminadas é o preenchimento com ácido hialurônico. Não à toa: é o método com menor risco de provocar reações alérgicas — a substância também é produzida naturalmente pelo nosso corpo — e com maior chance de sucesso.
“A dermatologia já usava esse produto há muitos anos, mas unicamente para tapar buraco, preencher um bigode chinês, arrumar uma olheira… Só que a técnica foi evoluindo e ganhando aplicações”, conta a dermatologista Maria Eduarda Pires, membro da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) e da Sociedade Brasileira de Cirurgia Dermatológica (SBCD).
Hoje, o ácido hialurônico não é apenas um preenchedor. Pode simular estrutura óssea e frações de gordura, mudando realmente as feições de um rosto.
Um dos exemplos mais conhecidos dos seus efeitos é o da socialite americana Kylie Jenner, que fez uso dessas técnicas antes mesmo do boom da harmonização.
A irmã mais nova da também influencer Kim Kardashian, que aparecia no reality show de sua família com rosto fino, pele clara e sardinhas, hoje exibe pele bronzeada, lábios carnudos, maçãs do rosto preenchidas e mandíbula bem demarcada.
E ela não está mais sozinha. A influência das celebridades digitais no padrão de beleza se mostra cada vez mais poderosa.
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Segundo a Sociedade Americana de Cirurgiões Plásticos, houve um aumento constante na aplicação de preenchimentos labiais a partir de 2015, quando Kylie fez o primeiro procedimento e o assumiu publicamente. Coincidência? Os especialistas acreditam que não.
Mas é preciso ter cautela com as inspirações (e ilusões) da internet.
“Alguns pacientes chegam ao consultório querendo ficar iguais a fotos de artistas que claramente são alteradas por Photoshop. Cabe a nós, médicos, explicar que aquele resultado é impossível”, diz a dermatologista Juliana Toma, que atua em São Paulo.
“Eu já encaminhei pacientes para ajuda psicológica porque a expectativa delas era irreal”, relata.
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O ácido hialurônico, é bom que se diga, não vive só de transformações faciais. De acordo com a dermatologista Lilia Guadanhim, também membro da SBD, existem basicamente quatro estratégias de tratamento com o produto: embelezamento, envelhecimento positivo, correção e a tal da transformação.
A primeira linha visa “aperfeiçoar” detalhes que a pessoa julga relevantes para si, como volume dos lábios ou a redução de olheiras.
A segunda busca melhorar a sustentação e a elasticidade da pele, atributos que se perdem normalmente com o passar dos anos, e atenuar as marcas do envelhecimento.
A terceira procura corrigir questões anatômicas, caso de um queixo muito para dentro ou de uma bolsa debaixo do olho.
A quarta linha é a que compõe a harmonização facial e procura alterar características para padrões considerados mais “femininos” (uma maçã do rosto bem destacada, por exemplo) ou “masculinos” (uma mandíbula quadrada).
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O duro é que a moda sempre muda. E nosso rosto não vai conseguir acompanhar. “A transformação com ácido hialurônico ou outras substâncias é a pior estratégia para mim. Deixar todo mundo com o queixo definido ou a sobrancelha arqueada é um modismo atual, e pode ser considerado brega daqui a seis meses”, argumenta Lilia.
“Ir seguindo modas tende a deixar o paciente constantemente insatisfeito, ao passo que a beleza natural nunca vai deixar de ser valorizada ”, conclui a especialista.
A dermato também chama a atenção para outro ponto preocupante: a massificação sem critério desses procedimentos.
“Às vezes eles são prescritos como se fosse algo vendido em supermercado. É a mesma quantidade de produto para qualquer paciente independentemente do caso e objetivo. E isso pode partir de médicos não especialistas como, principalmente, de profissionais não médicos, que pecam no diagnóstico e na indicação dos procedimentos”, critica.
E, aí, Lilia toca numa ferida: a controversa questão de quem está aplicando as técnicas de harmonização facial.
Pela legislação, não só médicos mas também dentistas, biomédicos, farmacêuticos e fisioterapeutas têm aval para injetar substâncias como ácido hialurônico e Botox.
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A SBD se posiciona contra, pois acredita que esses procedimentos deveriam ser feitos exclusivamente por médicos habilitados, e os outros profissionais estariam violando a Lei do Ato Médico, que define o rol de atividades e recursos diagnósticos, terapêuticos e estéticos que competem apenas à categoria.
Na visão da entidade, aplicações de toxina botulínica e mesmo preenchimentos estão inseridos nessa legislação, uma vez que seriam técnicas que exigem uma compreensão profunda da anatomia e da fisiologia do corpo humano para garantir a segurança ao paciente.
Aplicações equivocadas de ácido hialurônico podem levar à necrose de uma porção do rosto, à cegueira e, pasme, até a um AVC.
Mas as outras categorias rebatem. “Existe uma lei federal de 1966 que dá a prerrogativa ao cirurgião-dentista de prescrever medicações de uso interno e externo, ou seja, desde aquela época podemos aplicar produtos na região da face. Sem falar que os cirurgiões bucomaxilofaciais há anos reconstroem rostos traumatizados”, explica Caio Perrella de Rezende, presidente da Câmara Técnica de Harmonização Orofacial do Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (Crosp).
“Além dos conhecimentos adquiridos na graduação, nossas pós-graduações nessa área abrangem disciplinas sobre o manejo de complicações durante os procedimentos. E, assim como os médicos, dentistas podem prescrever remédios caso ocorra qualquer problema, o que é vedado a outras categorias da saúde”, completa o dentista.
Em 2019, o Conselho Federal de Odontologia (CFO) regulamentou a harmonização orofacial como uma especialidade da área, reconhecendo que dentistas podem ser capacitados a realizar procedimentos estéticos faciais. Mesmo antes da decisão, isso não estava à margem da categoria, pois profissionais já faziam aplicação de toxina botulínica em casos de bruxismo ou disfunção na articulação da mandíbula, por exemplo. Mas, devido a polêmicas e irregularidades envolvendo alguns dentistas, o CFO especificou os procedimentos que não competem à classe em uma nova resolução de 2020. Técnicas invasivas como cirurgia no nariz, nas pálpebras, nas orelhas, no pescoço, no colo e nas mãos não estão autorizadas. Profissionais que realizam essas intervenções ilegalmente estão sujeitos a punições.
Os biomédicos também alegam know-how para realizar as técnicas e lidar com complicações. “Nós temos um conhecimento geral das patologias, da anatomia e da fisiologia humana que nem todos os cursos e profissionais de saúde têm. Nos aprofundamos bastante em microbiologia e farmacologia, e isso nos dá uma boa bagagem para trabalhar com esse tipo de procedimento”, diz Raquel Chaves, biomédica esteta e delegada do Conselho Regional de Biomedicina (CRMB1) — Seccional Rio de Janeiro.
Para ela, o fato de a classe não poder prescrever remédios caso ocorram intercorrências não é necessariamente um problema. “Podemos muito bem encaminhar o paciente ao atendimento médico. Na maioria dos casos, isso não é necessário, mas, se for preciso, não há nada de errado em envolver outros profissionais”, opina Raquel.
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O que é crítico, não importa a categoria amparada por lei a aplicar Botox e companhia, é a capacitação para fazer corretamente esses procedimentos. E pesquisas sugerem que ainda há uma longa jornada para melhorar isso.
Em sua tese de doutorado pela Universidade Federal de Goiás (UFG), a dentista Lívia Graziele Rodrigues entrevistou 180 profissionais de odontologia sobre as capacidades técnicas para executar rinomodelação e bichectomia, duas técnicas autorizadas para essa classe — a primeira para o nariz, a segunda para o contorno facial.
E seu estudo constatou que grande parcela dos participantes ouvidos, mesmo aqueles com pós-graduação na área, não se sentia preparada para tocar os procedimentos e tratar intercorrências.
Mais de 70% disseram que encaminhariam algum caso de complicação na região do nariz a um médico, por exemplo.
“A harmonização orofacial é uma especialidade odontológica como qualquer outra, mas ainda temos questões delicadas principalmente em relação à formação dos profissionais. Não dá para banalizar ou reduzir essas técnicas a procedimentos simples, pouco invasivos e de alto rendimento financeiro, como muita gente faz”, afirma o dentista Rhonan Ferreira da Silva, professor da UFG e orientador do trabalho.
“As intercorrências existem e nem sempre os profissionais são capazes de resolvê-las. E é preciso lembrar que sequelas na face comprometem aspectos funcionais, psicológicos e sociais”, continua o especialista.
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A avaliação do professor nos remete a mais um alerta: há pessoas que nem sequer são formadas em um curso da área da saúde fazendo intervenções estéticas a torto e a direito. E os riscos não são poucos.
“Temos visto diversas faces deformadas por causa de procedimentos mal executados ou mal indicados”, conta Maria Eduarda. Daí o conselho de sempre checar as credenciais do profissional a que você vai entregar o rosto.
“Existe uma responsabilidade também do paciente. Não adianta querer pagar muito menos ou escolher pelo perfil do Instagram vendo aquelas fotos de antes e depois. Hoje há informação disponível para não se deixar enganar”, diz Lilia.
Faça o básico
Não adianta apelar a procedimentos estéticos sem ter estes cuidados com o rosto na rotina
Limpeza adequada
Lave, em média, três vezes ao dia e use sabonetes específicos para o seu tipo de pele.
Proteção sempre
Procure usar o filtro solar diariamente, já que ele combate o envelhecimento precoce da pele.
Atenção com a maquiagem
Sempre remova bem antes de dormir e priorize produtos menos agressivos — alguns inclusive cuidam da pele.
Regule a alimentação
O consumo elevado de açúcar e gordura tende a deixar a pele mais inflamada. Álcool e cigarro também a maltratam.
Frequente um dermatologista
A ideia não é ir ao médico só quando existem problemas visíveis, mas visitá–lo pensando em prevenção.
Apesar do boom recente da harmonização facial, já se nota que a tendência começa a perder espaço. As pessoas, mais conscientes e resistentes ao padrão único de beleza, estão cada vez mais com receio de ficar com um rosto artificial.
E é aí que novas técnicas entram em cena. Uma das que ganharam tração nos consultórios médicos é a MD Codes (códigos médicos, em tradução livre), criada pelo cirurgião plástico brasileiro Maurício de Maio.
Resumidamente, ela propõe atuar na causa para melhorar a consequência. “Em vez de preencher o bigode chinês para tirar as linhas de expressão, por exemplo, a gente vai devolver sustentação à parte lateral do rosto”, descreve Lilia, que trabalha com o método. “Assim conseguimos resultados mais naturais e duradouros”, justifica.
Esses cuidados, aliás, podem vir antes mesmo de rugas e outros incômodos aparecerem. Tanto que a grande tendência agora na dermatologia e na cosmiatria é a prevenção.
“Se um paciente procurar procedimentos apenas aos 50 ou 60 anos, nem todo o dinheiro do mundo vai gerar um resultado ótimo e natural. Podemos começar a estimular o colágeno da pele e tratar imperfeições aos 30 para chegar aos 60 bem melhor”, propõe Juliana.
Aí, convenhamos, nenhum filtro virtual será necessário.