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Entrevista: como traçar a biografia dos vírus para impedir novos surtos

O cientista Nuno Faria, uma referência em dengue, febre amarela e afins, revela as técnicas modernas que ajudam a antever epidemias e até a contê-las

Por Theo Ruprecht
Atualizado em 20 fev 2020, 19h15 - Publicado em 27 jun 2019, 17h49

Em um ano é a dengue que vem forte. No outro, a febre amarela causa estragos praticamente no Brasil inteiro. E depois vem o zika, o chikungunya, ou mesmo um novo vírus transmitido por mosquitos como o Aedes aegypti. Mas o que define esses ciclos infecciosos e como antecipá-los para evitar grandes epidemias e mortes? Essa é pergunta que move boa parte do trabalho do biomédico Nuno Rodrigues Faria.

Português de nascimento, ele se tornou uma referência mundial em doenças infecciosas de origem tropical. Hoje professor da Universidade de Oxford, no Reino Unido, ele combina informações do ambiente, da população local e dos insetos com dados genéticos dos vírus para, digamos, traçar uma biografia desses inimigos da saúde.

“Podemos complementar os estudos com uma abordagem moderna, que realmente tenta recuperar informações genômicas, para criar um histórico da infecção e inferir previsões”, resume o pesquisador. Sabendo onde o vírus tem mais chance de causar estragos, as autoridades podem se antecipar, promovendo campanhas de vacinação ou de combate aos mosquitos, por exemplo.

Nuno Faria teve parte de sua formação no Brasil, na Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, e chegou a ministrar cursos no Instituto Evandro Chagas, no Pará. Por essas e por outras, muitas de suas investigações têm o nosso país como foco.

E tudo leva a crer que ele vai dedicar ainda mais tempo a doenças infecciosas tropicais que assolam o território brasileiro. Isso porque integra o recém-criado Centro Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (CADDE).

A iniciativa reúne três instituições britânicas e quatro brasileiras. Ela será coordenada pela pesquisadora Ester Sabino e terá sede no Instituto de Medicina Tropical da USP – e conta com um investimento de 4 milhões de reais da Fapesp, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, e de mais 1 milhão de libras esterlinas vindas do Reino Unido.

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Confira agora a entrevista que SAÚDE fez com Nuno Faria sobre como a ciência moderna, aliada a medidas de saúde pública, tem potencial para reduzir o impacto de dengue, zika, chikungunya, febre amarela e afins:

Nuno Faria
O pesquisador português Nuno Faria se vale do estudo da genética e de outros métodos para tentar conter diferentes surtos. (Foto: Divulgação/SAÚDE é Vital)

SAÚDE: As infecções emergentes, como chikungunya, zika e mesmo a febre amarela, estão ganhando espaço nos últimos anos?

Nuno Faria: no caso da febre amarela, nós sabemos que existem vários fatores que contribuem para surtos. Entre eles, temos as mudanças ecológicas que favorecem os mosquitos, como é o caso da urbanização. A variação climática também. E a falta de vacinação nas áreas de risco também é muito importante.

Um ponto comum a todas as arboviroses [vírus disseminados por insetos e aracnídeos] transmitidas por mosquitos e em especial pelo Aedes aegypti, é que a mobilidade dos vírus e das suas linhagens depende da mobilidade dos hospedeiros. Dos seres humanos, portanto.

E nós viajamos cada vez mais e mais rapidamente de um lugar a outro. Isso obviamente facilita o transporte de ovos de mosquitos e de pessoas infectadas, que contribuem para a transmissão onde há esses insetos e uma população completamente suscetível.

Isso aconteceu com o zika. O que vimos foi um aumento de 50% no número de viagens aéreas para o Brasil de todos os aeroportos do mundo que coincide com a transmissão endêmica no país no início de 2014, mais ou menos. Esse crescimento no número de voos facilita a disseminação não só do zika, como do chikungunya, por exemplo.

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Eu acho que a mobilidade humana, o fato de certos mosquitos estarem bem distribuídos por zonas tropicais e subtropicais e a dificuldade de erradicar esses insetos criam condições favoráveis para a transmissão das arboviroses nos dias de hoje.

Há estudos que buscam conter essas doenças com a aplicação de bactérias nos criadouros dos mosquitos. Ao entrar em contato com o inseto, elas impediriam a transmissão do vírus. Como o senhor encara essas iniciativas?

Eu acho que todas as possibilidades devem ser consideradas. É necessário avaliar o impacto de cada uma das opções não só a curto prazo, mas a médio e longo prazo. E isso envolve avaliar custos e a sustentabilidade dos projetos.

Alguns desses trabalhos são importantes. Mas é difícil no curto prazo pensar em sustentabilidade, porque isso envolve uma atuação continuada, complexa e potencialmente cara.

Eu acho que são modalidades a considerar junto com as outras, como a vacina. Temos três vacinas para a dengue, por exemplo: só uma está licenciada, mas ainda não temos uma ação perfeita. Ela parece prevenir casos mais severos, porém não é para pessoas que nunca foram expostas à dengue.

Existem outras duas vacinas, uma do Instituto Butantan e uma da farmacêutica Takeda. Elas estão em fases finais de estudos e estão evoluindo bem. Vamos ver se as teremos em pouco tempo.

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Em relação a febre amarela, já temos uma vacina altamente eficaz e que é produzida no Brasil desde 1937. Eu acho que é importante reforçar que essa vacina, como todas, pode ser efetivamente administrada em áreas de risco de transmissão.

No Brasil, tivemos faz pouco o maior surto de febre amarela desde os anos 1920, com mais de 2 mil casos confirmados e quase 800 mortes. Ainda assim, há pessoas que não foram vacinadas. Temos que fazer a vacinação chegar à população de risco. Quando mais conseguirmos fazer isso, menores serão os surtos. Porque eles vão continuar a acontecer.

No Brasil, a gente se acostumou a colocar dengue, zika, febre amarela e chikungunya na mesma frase. Esses vírus são mesmo parecidos?

Vamos por partes. Zika e dengue são muitas vezes considerados primos. São parte da mesma família, os flavivírus. Como eles, a febre amarela também é um flavivírus, mas é um pouco mais distante e transmitida por outros vetores que não só o Aedes aegypti.

O chikungunya é de outra família de vírus, os alfavírus, mas também pode ser transmitida pelo Aedes aegypti e pelo Aedes albopictus.

O chikungunya, o zika e a dengue só têm um ciclo de transmissão, que é o urbano. O Aedes aegypti e ocasionalmente o Aedes albopictus infectam o ser humano nas cidades.

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A febre amarela tem essa possibilidade também. Os últimos casos foram datados de surto epidêmico de 1928 ou 29. Mas ela ainda conta com o ciclo silvestre, que é a forma de transmissão atual. Ele envolve os mosquitos Haemagogus e o Sabethes, que ficam em regiões mais florestadas.

Já no caso do vírus da dengue, há quatro sorotipos distintos. Então uma pessoa pode ser infectada por mais de um sorotipo ao longo da vida. No Brasil especificamente, temos um padrão hiperendêmico. Os quatro sorotipos circulam. Às vezes um atinge uma população local que está menos imunizada, o que causa surtos maiores.

O zika também tem suas diferenças. Só existe um sorotipo, mas existem dois genótipos. O asiático e o africano, sendo que o asiático é o único associado efetivamente à microcefalia. Ele veio do sudeste asiático, depois para a Polinésia Francesa e as Ilhas do Pacifico, até que em 2014 chegou ao Nordeste do Brasil. De lá, espalhou-se rapidamente para outras regiões do país e depois para outros países das Américas.

O que faz doenças como essas aparecerem, causarem um surto e, depois, se manterem em um local como o Brasil?

Isso tem muito a ver com os vetores. Mas também com a imunidade da população. Se 70% de uma população exposta a um novo vírus fica infectada, como aconteceu no Nordeste com o zika, em um ano ou dois a epidemia se espalha. Aí, no ano seguinte, não devemos ver tantos casos, porque já não há quantidade de pessoas vulneráveis para gerar um surto de grandes proporções. Isso porque, quando a pessoa é infectada, ela desenvolve anticorpos que a protegem de uma reinfecção por zika.

No caso do Brasil, um grande surto de zika foi confirmado em 2016. Em 2019, como boa parte da população em risco de ser infectada já havia tido contato com vírus, ele não encontrou condições para se expandir para outras localidades, como por exemplo São Paulo, que não teve surto conhecido de zika e a transmissão segue baixa. Há poucos casos agora no Brasil, mesmo quando a temperatura estava alta, onde se esperaria mais episódios. Já a dengue veio com força.

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Por outro lado, é difícil fazer esse tipo de análise. Com tantos casos e tantas doenças diferentes, fica complicado entender qual o vírus está causando o quadro clínico. Muitos casos potencialmente identificados com dengue podem ser zika e vice-versa. Ou mesmo como chikungunya, porque são sintomas parecidos entre eles.

E isso faz com que seja difícil traçar um cenário de qual a população que realmente está imune a qual vírus. Isso exigiria um esforço vacinal e uma análise de sorologia e de anticorpos nos exames, em diferentes estados. Só assim conseguiríamos um caráter mais definitivo da população infectada por vírus e quem ainda está em risco por outros arbovírus.

Agora um parêntesis. O caso da febre amarela é um pouco distinto. Nesse caso, é possível ter uma população humana resistente a ela localizada na Amazônia, ao mesmo tempo que o vírus se mantém ali por meio de um ciclo silvestre contínuo, com base em mosquitos e primatas não humanos [macacos].

Mas, de 14 em 14 anos, há um surto grande em primatas não humanos que se estende para outras regiões. O vírus se move de alguma forma de lá para regiões mais ao sul e sudeste. É um ciclo, talvez provocado por chuvas intensas ou por maior concentração de mosquitos. Mas os reservatórios desse vírus ainda não são conhecidos na Amazônia. Há muito trabalho a fazer nessa área para entender quais macacos e mosquitos estão por trás desse ciclo silvestre.

Como transpor esses e outros dados científicos para atitudes públicas efetivas, capazes de intervir ou mesmo antever possíveis epidemias?

Na verdade, esse tipo de informação já foi usado nas campanhas de vacinação de febre amarela no Estado de São Paulo, que conheço um pouco melhor. Nesse caso, a secretaria estadual de saúde e seus institutos de pesquisa fizeram uma ação coordenada para identificar rapidamente quais os primatas estavam infectados com febre amarela e em quais localidades.

Isso para tentar entender quais os padrões de transmissão e, assim, otimizar as campanhas de vacinação baseado na distribuição dos casos de febre amarela em primatas não humanos. Nós sabemos que as infecções em primatas não humanos funcionam como um alerta. É uma informação de que o surto pode acontecer em humanos.

Onde podemos melhorar então?

Bom, o projeto CADDE é sediado em São Paulo, enquanto seu projeto irmão, que é o Zibra, é móvel e vai para o Brasil inteiro. O CADDE é coordenado junto com a professora Ester Sabino, diretora do Instituto de Medicina Tropical, enquanto o Zibra é coordenado em conjunto com o professor Luiz Alcantara, da Universidade Federal de Minas Gerais. Com esses dois projetos, queremos entender melhor a diversidade genética desses vírus.

Falando especialmente no contexto de febre amarela, pretendemos ver a diversidade genética dos vírus que infectaram primatas não humanos, mosquitos e também os humanos. Queremos fazer isso ao longo do tempo e do espaço. Veja, todos esses vírus partiram de uma história evolutiva.

Tal como todos nós em última instância temos uma genealogia que poderia ser construída com base no DNA, o mesmo acontece com esses vírus que causam surtos.

O que nós tentamos fazer é gerar dados genômicos dos vírus da febre amarela que estão circulando para tentar construir sua história, sua origem e seu percurso ao longo do tempo e do espaço. Podemos complementar trabalhos epidemiológicos que já foram feitos com uma abordagem moderna, que realmente tenta recuperar essas informações genômicas para criar um histórico e inferir previsões.

Uma das coisas que queremos responder: quais são os fatores que determinam a distribuição da febre amarela no Brasil? Tendo essa informação genética e reconstruindo essa história evolutiva, podemos começar a testar hipóteses de qual a influência, por exemplo, da movimentação de primatas não humanos ou da temperatura. Entender essas informações com detalhe é o que nos vai permitir testar modelos que, com uma precisão maior, podem antecipar onde vai haver a explosão do próximo surto.

Isso é especialmente importante em contextos de surtos cíclicos. No estado de São Paulo, houve um surto em 2000, outro em 2008, mais um em 2016. Nas últimas duas décadas, portanto, temos surtos de oito em oito anos essencialmente. O que isso significa? Que em 2024, é bastante provável que vá vir outro surto.

Então, se daqui cinco anos tivermos essas informações e soubermos onde esses vírus se escondem quando não estão epidêmicos, realmente acho que daremos um retorno para população, priorizando a vacinação em áreas estratégicas, capazes de minimizar o surto.

Esse é um dos grandes objetivos. Claro que há muito trabalho por outros pesquisadores e outros centros que já ajudaram a evitar que esses surtos atuais não tenham sido tão ruins quanto poderiam ter sido. É realmente um esforço em conjunto o que pretendemos fazer.

Quais seriam os principais objetivos do CADDE então?

É uma parceria entre três instituições do Reino Unido e quatro do estado de São Paulo. Ela começou em abril de 2019 e já conta com mais de 40 pesquisadores envolvidos em projetos com arboviroses.

Um dos objetivos principais do CADDE é efetivamente criar uma rede de pesquisa única na América Latina, a partir de laboratórios de instituições públicas de uma das cidades mais populosas do mundo.

Nós combinamos expertises de diferentes áreas, como genômica e vigilância epidemiológica, e estamos combinando isso com todo o trabalho que já sendo feito em arboviroses.

Depois de um momento inicial para realizar certas análises, queremos ver em tempo real o fluxo dos vírus para podermos começar a entender quais fatores que preveem surtos com eficácia. Poderíamos tentar oferecer relatórios semanais aos municípios para um efetivo controle das arboviroses, por exemplo.

Quão importante é o estudo da genética em infecções como zika e dengue?

Avaliar e desvendar o genoma do vírus é esse essencial para fazer diagnósticos corretos com exames, para encontrar tratamentos e para desenvolver vacinas.

Além disso, como disse, através do estudo das semelhanças entre vírus, conseguimos aprender muito sobre a epidemiologia de uma determinada doença. No caso da febre amarela, foi esse tipo de informação, combinada com dados epidemiológicos, que permitiu concluir que o último surto era silvestre e que não havia transmissão de forma urbana, por meio do Aedes aegypti. Cabe lembrar que algumas pessoas já estavam sugerindo isso, tamanho o número de casos.

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