Quase nove décadas de labuta não cansaram um fígado carioca. Com a morte de seu empregador original no dia 23 de julho de 2017, ele trocou rapidamente de estação de trabalho. Foi parar em um corpo mais jovem e continuou fazendo o que sabe: eliminar toxinas, renovar o sangue, produzir bile… O primeiro proprietário do órgão, um homem falecido aos 89 anos, é o doador mais velho do Rio de Janeiro. “O receptor passa bem. É uma nova oportunidade de vida, graças à atitude solidária da família desse senhor”, comemora Eduardo Fernandes, cirurgião envolvido no procedimento e chefe do Programa de Transplante Hepático do Hospital Adventista Silvestre, na capital fluminense.
A despeito da generosidade dos familiares, não muito tempo atrás um órgão tão maduro seria aposentado compulsoriamente — o limite, para doadores e receptores, ficava na casa dos 60 anos. “Flexibilizamos as contraindicações ao longo da história”, conta o nefrologista Mário Abbud Filho, diretor do Centro Interdepartamental de Transplantes de Órgãos e Tecidos do Hospital de Base, em São José do Rio Preto (SP). “O acúmulo de conhecimento e a tecnologia tornaram essa estratégia mais segura e eficaz”, arremata.
Na década de 1950, a consolidação de técnicas cirúrgicas promoveu a primeira onda de transplantes. Em Boston, nos Estados Unidos, os médicos David Hume e Joseph Murray inseriram rins de doadores em dez pacientes — o que viveu mais aguentou seis meses. A alta taxa de mortalidade, em boa parte provocada pela rejeição ao órgão implantado, quase inviabilizou essas operações até os anos 1980, quando veio a ciclosporina. O remédio, capaz de conter o sistema imune, contornou a rejeição e financiou a abertura de vários centros transplantadores pelo globo.
De lá para cá, outros medicamentos chegaram ao mercado, métodos cirúrgicos e equipamentos foram refinados e as estruturas de atendimento ao paciente e de coleta de órgãos melhoraram. Tanto que, hoje, acima de 90% dos indivíduos que ganharam um rim vivem por três anos ou mais. Aliás, a longevidade deles também supera muito a de quem recorre à hemodiálise. É uma revolução que, felizmente, não se restringe aos rins.
Peguemos o caso do transplante de córnea, líder do ranking da ABTO com 14 534 operações em 2016. Antes, ceratocone e outros males exigiam que o médico retirasse essa parte do olho inteira e a substituísse, com um risco de rejeição de até 30%. “Hoje, conseguimos remover só a camada danificada e inserir a mesma do doador, preservando tecido saudável”, conta o oftalmologista Victor Antunes, diretor da Sociedade Brasileira de Catarata e Cirurgia Refrativa. A inovação derruba aquele índice para menos de 5%. “Mas a técnica não é regra no Brasil”, pondera Antunes.
Outra novidade (ainda menos usual por aqui) é a máquina de perfusão. Em vez de o órgão doado ser embrulhado em um saco com uma solução cheia de substâncias vitais e colocado num isopor com gelo, ele é inserido nesse equipamento. Aí, o dispositivo bombeia o líquido nutritivo para dentro do tecido vivo e o resfria até a implantação no receptor. “Nos Estados Unidos, onde o aparelho é mais comum, a taxa de insuficiência renal aguda, uma possível complicação do transplante de rim, fica ao redor de 30%”, ilustra Abbud.
No nosso cenário, a prevalência dessa incapacidade temporária de o novo órgão trabalhar direito sobe para cerca de 70% — dá pra contra-atacar o quadro se valendo da hemodiálise por uns dias. Só que o custo da máquina e do líquido infundido é muito elevado. “Talvez seja mais custo-efetivo investirmos na educação dos profissionais que atendem o doador. Até para eles entenderem que, mesmo após a morte cerebral, devemos preservar os outros órgãos”, argumenta Abbud. Também é crucial fornecer insumos médicos que garantam um bom estado corporal até a retirada dos tecidos.
“As técnicas cirúrgicas, as tecnologias e os remédios já são satisfatórios. O maior desafio é superar os entraves sociais”, reflete o cirurgião cardiovascular José Lima Oliveira Júnior, integrante da Comissão de Remoção de Órgãos da ABTO. Combater a pobreza precisa ser prioridade para aprimorarmos os resultados do nosso programa nacional de transplantes, o segundo maior do mundo. Exemplo: “Moradores de residências sem saneamento estão mais sujeitos a complicações após receber um órgão”, conta o cirurgião Renato Ferreira da Silva, chefe da Unidade de Transplante de Fígado e Intestino do Hospital de Base. Por quê? O contato com sujeira, associado à fragilidade do sistema de defesa provocada pelas drogas imunossupressoras, catapulta a probabilidade de infecções letais.
A desigualdade ainda favorece a principal causa de não aproveitamento de um potencial doador no Brasil: a recusa familiar. Em 2016, 43% dos pais, maridos, avós ou filhos não permitiram a retirada de órgãos de entes falecidos. E nos estados mais pobres, como Roraima e Acre, o número supera os 75% — no Paraná, fica em 33%. Lembra a solidariedade dos familiares daquele senhor carioca? Nos transplantes, ela pode salvar até mais vidas do que as promessas a seguir.
O que esperar do amanhã
Os cientistas estão focados em eliminar a rejeição do corpo, até porque os fármacos que a atenuam devem ser tomados pelo resto da vida, não funcionam em uma minoria dos casos e podem provocar efeitos colaterais. Atualmente, estão sendo testados transplantes em que as células de um órgão doado capazes de provocar reações negativas são trocadas por células do receptor. Experimentos bem-sucedidos foram feitos com pele, bexiga, traqueia…
“A bioengenharia, eventualmente com apoio de impressoras 3D, é promissora, mas há uma dificuldade em fazer um grupo de células adotar o formato exato de um fígado, por exemplo”, analisa Oliveira Júnior. Outra possibilidade é modificar geneticamente animais (porcos, principalmente) para que eles originem órgãos compatíveis conosco. Sim, isso existe e tem até nome: xenotransplante. A meta é impedir a transmissão de doenças do bicho para o ser humano. Mesmo com tanta evolução, um desafio persiste: mais que tecnologia, ainda carecemos de altruísmo.
Realidade ou maluquice?!
Conheça transplantes nada usuais alardeados nos últimos tempos
De cabeça
O italiano Sergio Canavero prometeu, até o fim de 2017, separar a cachola de um russo com uma doença rara incapacitante de seu corpo e a implantar em outro. Quase a totalidade dos médicos critica a postura de Canavero e afirma que ele não possui recursos seguros para isso.
De ovário
Mais de 60 bebês nasceram em virtude da técnica. Trata-se de um autotransplante em que parte do ovário é retirada antes de a paciente passar por um tratamento agressivo (contra o câncer, eminentemente). Depois, ela é reinserida.
De fezes
As bactérias do cocô de sujeitos saudáveis podem, após uma purificação em laboratório, ser administradas a pessoas com uma doença intestinal, por exemplo.