Como interpretar um estudo científico?
Em tempos de Covid-19, a metodologia das pesquisas está sob os holofotes, mas a análise de um estudo exige cautela. Que tal entender melhor esse universo?
Nunca se ouviu falar tanto em evidência, revisão, placebo e outros termos outrora restritos à academia. A pandemia nos aproximou da ciência e de seus bastidores, mas a interpretação dos resultados de pesquisa é um processo complexo, que exige certo conhecimento técnico e olhar crítico.
Conversamos com cientistas para desvendar um pouco destes meandros. Vamos usar como base um estudo randomizado controlado duplo cego, que é considerado o ideal para comprovar a ação de um medicamento ou vacina. Só 13% dos medicamentos ou vacinas idealizados na bancada chegam a ser aprovados para uso depois de passar pelo escrutínio dos testes.
A pergunta
A pesquisa começa com uma hipótese, isto é, uma pergunta a ser respondida e originária de experiências anteriores. Também se define o desfecho esperado, isto é, qual será a medida de sucesso da intervenção.
Os voluntários
É hora de delimitar o universo do estudo, a quantidade e o perfil das pessoas que serão voluntárias: sexo, etnia, idade e se há presença de outras doenças ou não. Quanto maior e mais diversa a população, mais confiável será o resultado. Nos primeiros testes de um remédio, geralmente os participantes são adultos saudáveis. Depois, o escopo aumenta para incluir idosos, gestantes, crianças etc.
A divisão de grupos
Os recrutados são repartidos por sorteio em dois grupos: um receberá o remédio, outro será o grupo controle — que toma um placebo (droga falsa) ou recebe o tratamento convencional para a doença. A divisão precisa ser aleatória para impedir que o pesquisador coloque alguém mais adequado no grupo da medicação, o que influenciaria os resultados a seu favor.
O cegamento
Durante um período predeterminado, os participantes tomam o remédio ou o placebo. Ninguém sabe quem está tomando o quê (nem os cientistas), pois o efeito psicológico pode mudar o comportamento da pessoa e até sua própria resposta fisiológica — há vários relatos do tipo na literatura. Se souber o que está administrando, o próprio pesquisador pode ficar sugestionado em sua avaliação.
A análise dos achados
Findo o período de intervenção, os pesquisadores “abrem” os dados e verificam o que aconteceu nos dois grupos. Os resultados são acompanhados de um intervalo de confiança, uma espécie de margem de erro das pesquisas eleitorais, acompanhada de uma porcentagem que define a confiabilidade do dado. Quanto maior essa porcentagem (e menor a margem), melhor. A precisão do intervalo de confiança dos melhores estudos, como os das vacinas, é de 95%.
A redação do artigo
O trabalho reúne todas as informações e resultados brutos, como os dados clínicos dos voluntários ou os níveis de alguma substância no sangue. Em linhas gerais, a estrutura do texto segue a lógica: resumo (um apanhado de como o estudo foi feito e o que descobriu), introdução (que contextualiza a pesquisa), metodologia, resultados e as conclusões obtidas.
A revisão dos pares
Depois de escrito, o artigo é enviado a um periódico, que é uma espécie de revista científica temática. Antes da publicação, contudo, o texto é revisado (e, se preciso, questionado) por outros cientistas que não estão envolvidos na investigação. Desconfie dos profissionais que preferem jogar discussões logo de cara para o público em geral: os resultados devem ser discutidos antes com os pares.
A publicação
O periódico em que o artigo sai pesa bastante. Quanto mais reputada a revista, mais rigorosa a seleção dos artigos. Nesse contexto, existem tanto as respeitadas como as predatórias, que aceitam qualquer texto em nome do lucro — elas são usadas por pessoas mal-intencionadas para suportar conclusões duvidosas. Vale consultar o fator de impacto do periódico, medida encontrada na internet.
Outros tipos de estudo
Eles são importantes, mas, sozinhos, não comprovam a eficácia de uma terapia:
In vitro: Provas em células isoladas para verificar o potencial da droga. Por exemplo, a capacidade de matar um vírus ou reduzir inflamação.
Observacional: É feito sem grupo controle e placebo. Só com ele, não dá para saber se a pessoa melhorou pelo remédio ou por outro fator.
Em animais: Etapa que antecede os testes em humanos. Aqui se obtêm dados preliminares sobre eficácia e resposta do organismo ao remédio.
Pré-clínica: Abrange os ensaios que avaliam o potencial terapêutico do remédio. Primeiro em células isoladas, depois em testes com animais.
Mandamentos para analisar os resultados de um estudo
1. Leia atentamente o resumo, que conta a metodologia e os principais achados.
2. Procure as limitações, que são descritas nas conclusões do artigo.
3. Número pequeno de pessoas avaliadas compromete a confiabilidade.
4. As conclusões de trabalhos pré-print (sem revisão) devem ser vistas com cautela.
5. Testes pré-clínicos não podem ser extrapolados para seres humanos.
6. Grandes milagres? Desconfie do santo. Na dúvida, verifique se outras pesquisas confirmam os dados do trabalho em questão.
As etapas antes da aprovação de um medicamento
O esquema vale também para os testes com vacinas:
Pré-clínica: Abrange os ensaios que avaliam o potencial terapêutico do remédio. Primeiro em células isoladas, depois em testes com animais.
Fase 1: Algumas dezenas de voluntários recebem o composto para atestar sua segurança e observar se há efeitos colaterais graves.
Fase 2: Envolve centenas de participantes. Além da segurança, define a dose ideal e analisa a resposta do organismo à medicação.
Fase 3: Etapa final, com dezenas de milhares de indivíduos. Vê os efeitos colaterais menos comuns e atesta a eficácia da estratégia.
Fase 4: Depois da aprovação, o monitoramento continua, em busca de efeitos a longo prazo, benefícios secundários e reações adversas raras.
Fontes: Fontes: Luiz Gustavo de Almeida, coordenador dos projetos educacionais do Instituto Questão de Ciência (IQC); Marcelo Takeshi Yamashita, diretor do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (Unesp); Laura de Freitas, farmacêutica e bioquímica, doutora pela Unesp, criadora do canal Nunca Vi 1 Cientista