Depois de cloroquina, ivermectina e tantos outros, é a vez da colchicina, anti-inflamatório usado no tratamento de gota, despontar como nova esperança contra o coronavírus. Uma nova pesquisa mostra benefícios discretos como tratamento precoce, enquanto outra traz notícias promissoras para casos graves. Mas ambas levantam dúvidas.
Vamos começar com um trabalho brasileiro que se concentrou nos quadros mais severos de Covid-19. Conduzido na Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto, ele é do tipo randomizado, controlado e duplo-cego, considerado o mais confiável para esse tipo de análise. Após dar colchicina para parte dos 72 voluntários hospitalizados com casos moderados ou graves da doença, os cientistas notaram que a colchicina reduziu o tempo de internação.
“No nosso trabalho, há indícios de que ela funciona para quem apresenta uma inflamação sistêmica”, explica o reumatologista Renê Oliveira, coordenador da pesquisa, cujos achados preliminares haviam sido divulgados sem revisão em agosto.
Agora os dados foram submetidos ao escrutínio de outros especialistas e publicados no periódico científico Rheumatic & Musculoskeletal Diseases (RMD Open). “A finalização do estudo permite afirmar que, além da alta mais rápida, observamos uma diminuição da proteína C-reativa, um marcador de inflamação sistêmica”, afirma Oliveira.
O grupo que tomou o fármaco foi dispensado do hospital, em média, três dias mais cedo. Ele também deixou de usar oxigênio três dias antes do grupo controle, que recebeu o tratamento padrão. Por outro lado, o próprio artigo informa que ainda não dá pra saber se essa droga reduz a mortalidade. “Os resultados sugerem que a colchicina contribui em casos de pessoas já internadas”, defende Oliveira.
Seu principal mecanismo de ação seria auxiliar no combate à tempestade inflamatória, típica das evoluções mais graves da doença.
“O estudo é bem feito, mas tem uma limitação, que é o número pequeno de pessoas avaliadas”, comenta a pneumologista Letícia Kawano-Dourado, do painel da Organização Mundial da Saúde (OMS) que elabora diretrizes de tratamentos para a Covid-19. Ou seja, investigações maiores e criteriosas precisam confirmar o papel do medicamento nos internados.
Colchicina pode ser o primeiro tratamento precoce contra Covid-19?
Um estudo coordenado pelo Montreal Heart Institute, no Canadá, concluiu que a colchicina diminui o perigo de agravamento da Covid-19 em pessoas do grupo de risco. O ensaio também foi do tipo controlado, randomizado e duplo cego.
Nele, 4 488 participantes com ao menos um fator de risco para a Covid-19 grave, como ter mais de 70 anos ou possuir doenças crônicas, foram divididos em dois grupos. Metade recebeu a colchicina por 30 dias a partir dos primeiros sintomas da infecção, enquanto o restante tomou um placebo.
No fim da análise, 4,7% dos voluntários que engoliram o remédio real morreram ou foram hospitalizados. No outro grupo, o índice foi maior, chegando a 5,8%. Isso indica um potencial benefício da substância quando aplicada logo após o surgimento da enfermidade. Mas os achados, ainda não revisados por outros pesquisadores, trazem mais dúvidas do que respostas.
Alexandre Zavascki, professor de infectologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), criticou pontos da execução do experimento. Um exemplo envolve a interrupção do estudo antes do final projetado. Segundo os pesquisadores envolvidos, a decisão foi tomada pela necessidade de comunicar os resultados encontrados frente à urgência da pandemia. “Mas isso também pode ser feito para não ‘perder’ o achado positivo com o desenrolar da investigação”, pondera o expert brasileiro.
Deslizes como esse, segundo ele, aumentam o risco de erros nos resultados. E isso é especialmente preocupante considerando que a diferença observada entre a turma que ingeriu a colchicina e o que não a recebeu é pequena. “Se olharmos apenas a mortalidade, ela foi de 0,4% no grupo placebo e 0,2% entre quem tomou o medicamento. Até podemos dizer que essa é uma queda de 50% no risco relativo de morte. Só que isso ocorre a partir de um limiar muito pequeno para pensarmos em um impacto na população”, pontua Zavascki.
Explica-se: seria preciso tratar muita gente para que uma obtivesse algum benefício do remédio. E, claro, a colchicina possui efeitos colaterais.
Já Letícia tem uma opinião diferente: “O material de divulgação infelizmente supervalorizou o resultado, o que não era o esperado para uma instituição séria como essa. Mas os dados do estudo não são de jogar fora. A colchicina se mostrou provavelmente eficaz em reduzir hospitalizações, mas, pelo rigor do método científico, não podemos bater de vez o martelo”, completa.
Parece complexo e burocrático, mas ser criterioso é necessário. Isso evita situações como a da cloroquina, que foi alçada ao posto de solução contra a pandemia e tomada aos montes. Infelizmente, ela logo se mostrou ineficaz e potencialmente perigosa para o coração de quem está com Covid-19.
“Enquanto os dados canadenses não forem revisados e confirmados por outros pesquisadores, não temos certeza da qualidade deles”, comenta o infectologista Alexandre Naime, da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). “O artigo não mostra que a colchicina é ineficaz como tratamento precoce, mas não prova de forma nenhuma que funciona nesse contexto”, conclui Zavascki.
O que podemos tirar dessa discussão?
“Por enquanto, não existe recomendação de uso por parte sociedades médicas ou governos”, crava Naime. “Estamos vendo muita publicidade de diferentes remédios antes de termos certeza da eficácia, e isso está acontecendo de novo com a colchicina”, arremata.
Letícia, por outro lado, raciocina que as evidências atuais são o suficiente para considerar o uso da droga em certos contextos. “Diante dos resultados e da gravidade da pandemia do coronavírus, é uma intervenção que poderia ser implementada em pacientes com alto risco de hospitalização, enquanto outros estudos vão correndo”, opina. A depender de levantamentos futuros, essa postura poderia ser revista, de acordo com ela.
A pneumologista diz que a história da colchicina não é igual a de outros fármacos amplamente disseminados como um tratamento precoce. “A ivermectina, por exemplo, só trouxe resultados positivos em células isoladas, e em uma dose tão alta que seria tóxica se usada em seres humanos”, compara. Já no caso da colchicina, há o estudo da USP de Ribeirão Preto e esse do Canadá, ambos com seres humanos.
Mas mesmo Letícia ressalta que não é adequado adotar um uso indiscriminado para todo paciente com casos leves ou mesmo assintomáticos. “Tomada por pessoas com baixa probabilidade de serem internadas, o risco dos efeitos colaterais seria maior do que o possível benefício”, argumenta.
Apesar de relativamente segura dentro dos limites originais de sua dose, a colchicina pode levar a quadros de diarreia – isso foi identificado nos estudos, inclusive – e é contraindicada para indivíduos com problemas hepáticos ou renais. Por fim, a compra na farmácia e a automedicação levam a outro problema, que é a falsa sensação de segurança.