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A era do cigarro eletrônico: ele faz menos mal para a saúde que o comum?

A invasão dos cigarros eletrônicos reacende a discussão sobre como lidar com o tabagismo, sobretudo entre os mais jovens

Por André Bernardo
Atualizado em 31 Maio 2021, 10h16 - Publicado em 29 out 2019, 10h35
vaper e bom
O mercado de dispositivos eletrônicos para fumar movimenta 1,7 bilhão de dólares só nos Estados Unidos. (Foto: Tomás Arthuzzi/SAÚDE é Vital)
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Eles não soltam fumaça fedida, não causam mau hálito nem espalham bitucas. À primeira vista, os cigarros eletrônicos, também chamados de vaporizadores, são o sonho de consumo de muitos fumantes. Diferentemente da versão de papel, que queima por combustão, o modelo funciona à base de vaporização. O dispositivo contém um líquido que, ao ser aquecido, gera o vapor aspirado e exalado pelo usuário. Segundo os fabricantes, essa seria a razão que torna os eletrônicos menos prejudiciais que os tradicionais. Mas há controvérsias. E a comunidade médica enxerga com preocupação a popularização desse novo jeito de fumar.

Nos Estados Unidos, que contabilizam mais de 9 milhões de vapers, como são conhecidos os adeptos dos dispositivos eletrônicos de fumar (DEFs), uma síndrome respiratória misteriosa já matou 12 usuários em pouco menos de um mês.

No mesmo período, 805 casos foram registrados em 46 dos 50 estados americanos. Mais da metade dos pacientes tem menos de 25 anos e três quartos são homens. Eles costumam chegar ao hospital com dor no peito, dificuldade para respirar e febre alta.

O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), do governo americano, admite não saber o que está por trás. Suspeita-se que seja o THC, componente psicoativo da maconha, que alguns vapers adicionam ao cartucho com nicotina líquida. Na dúvida, a agência de vigilância sanitária americana, o FDA, recomenda à população evitar, pelo menos por ora, a versão high-tech.

Por medida de segurança, alguns estados, como Michigan e Nova York, já proibiram a venda de modelos com sabor, segmento que representa 80% do total. Outros, como Massachusetts, estenderam a restrição a todo e qualquer dispositivo eletrônico

Até o momento, nenhum dos 180 países membros da Convenção — Quadro de Controle do Tabaco, da Organização Mundial da Saúde (OMS), relatou casos semelhantes. Pelo sim pelo não, a Índia, o segundo maior consumidor de tabaco do planeta, também barrou a venda dos cigarros eletrônicos.

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No Brasil, onde a comercialização desses aparatos é proibida mas eles se mostram cada vez mais acessíveis, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) solicita a hospitais que notifiquem casos suspeitos de problemas ligados a vaporizadores.

“Embora possam ser menos tóxicos que os cigarros convencionais, não quer dizer que eles sejam inofensivos”, adverte o porta-voz da OMS, Tarik Jasarevict. “Tampouco existem evidências de que eles ajudem a parar de fumar”, ressalta.

Na contramão das nações que restringem os e-cigarettes, o Reino Unido considera o alerta global alarmista. “Há quem diga que eles podem levar os mais jovens a fumar. Por aqui, pesquisas confirmam que o número de não fumantes que fazem uso de vaporizadores representa menos de 1% da população”, rebate o psicólogo Robert West, da University College London.

Além disso, cientistas britânicos acreditam que vaporizadores ou dispositivos de tabaco aquecido podem ser úteis como estratégia de redução de danos. Segundo um levantamento de 2014, para cada milhão de fumantes que substituem os modelos comuns pelos eletrônicos, mais de 6 mil vidas seriam salvas por ano.

No Brasil, país considerado referência mundial no combate ao tabagismo, o índice de fumantes é de 9,3% da população — há 30 anos, chegou a ser 34,8%. Pelo raciocínio britânico, se os 18,2 milhões de fumantes brasileiros migrassem para o modelo eletrônico, 108 mil vidas seriam salvas por ano. Mas esse cálculo não é tão puro e simples assim. E os médicos têm sérias restrições a ele.

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O que o povo anda fumando por aí

Cigarro comum: é o modelo convencional. Ao ser acendido, o fogo queima as substâncias perigosas à saúde, como nicotina, alcatrão e monóxido de carbono. O mesmo vale para charuto e cachimbo. Todos levam à dependência.

Eletrônico: no lugar da combustão do cigarro comum, o princípio aqui é a vaporização. A dosagem de nicotina varia de acordo com o fabricante. A mais baixa equivale a seis cigarros comuns. A mais alta a 18. Há versões aromatizadas.

Tabaco aquecido: também funciona por vaporização. Mas, em vez de aquecer nicotina líquida, esquenta lâminas de tabaco. Quarenta e oito países, entre eles Canadá, Japão e Alemanha, já comercializam o IQOS, o produto da Philip Morris.

Artesanal: tem vários tipos, boa parte deles compostos de 70% de tabaco e 30% de cravo — um dos apelidos é cigarro de bali. O popular cigarro de palha, por sua vez, tem de cinco a sete vezes mais nicotina e alcatrão que os convencionais.

Inalável e mascável: rapé (tabaco inalável), snus e fumo para mascar são exemplos de produtos de tabaco sem fumaça. Em vez de fumar, o usuário aspira, masca ou suga o tabaco. Todos podem propiciar lesões na boca ou na garganta.

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Narguilé: de berço oriental e hoje popular no Brasil, o aparato também se vale da vaporização. De uso coletivo, o “cachimbo d’água” não deixa de oferecer riscos. Uma sessão de 20 a 80 minutos corresponde a fumar 100 cigarros.

A trajetória do cigarro eletrônico

Em setembro, o publicitário Pedro Ivo Brito, de 29 anos, foi internado em São Paulo, onde permaneceu por cinco dias e teve que drenar água dos pulmões. Segundo a equipe que o atendeu, o quadro de pneumonia do rapaz foi agravado pelo uso do vaporizador, que ele conheceu durante viagem aos EUA. Tão logo recebeu alta e voltou para casa, Pedro, que fumava desde os 15, decidiu largar tanto o cigarro comum quanto o eletrônico.

“Imagine se esse produto já estivesse liberado no Brasil. É provável que estivéssemos vivendo uma epidemia tão grande ou pior do que a americana”, diz a cardiologista Stella Regina Martins, coordenadora da Comissão de Combate ao Tabagismo da Associação Médica Brasileira.

E a especialista completa: “Até o momento, não há evidências de que o cigarro eletrônico seja uma alternativa segura para quem não quer parar de fumar ou que possa ajudar quem queira. Temos que encorajar o usuário a largar o vício, e não a trocar seis por meia dúzia.”

Foi no leito de morte do pai, vítima de câncer de pulmão, que Hon Lik tomou uma difícil resolução: largar o cigarro. Fumante desde os 18, o farmacêutico chinês tentou de tudo e nada teria funcionado. Foi quando, em 2003, aprimorou um protótipo que, em vez de queimar o tabaco, aquecia a nicotina.

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Dez anos e muitos testes depois, vendeu sua patente por 75 milhões de dólares a uma multinacional britânica. Hoje, os DEFs são divididos em dois grupos — cigarro eletrônico e dispositivo de tabaco aquecido — e fabricados por várias empresas (inclusive do ramo tradicional).

“A indústria do tabaco se apropriou do discurso da redução de danos para vender a ideia de que o cigarro eletrônico é um produto seguro. Não é. Todo e qualquer cigarro aumenta o risco de doenças cardíacas e pulmonares, bem como de câncer”, alerta a médica Tânia Cavalcante, secretária-executiva da Comissão Nacional para o Controle do Tabaco do Instituto Nacional de Câncer (Inca).

Grosso modo, o cigarro eletrônico é constituído de três partes: uma bateria de lítio; o módulo, ou atomizador, que regula o aquecimento; e o refil, ou cartucho, que armazena a nicotina diluída em solventes. Para quem alimenta a ideia de trocar um modelo pelo outro, aí vão duas notícias: uma boa e outra péssima.

A primeira é que, ao contrário do cigarro tradicional, o eletrônico não tem alcatrão (que financia infartos) nem monóxido de carbono (cancerígeno). A má notícia é que, em compensação, tanto o vaporizador quanto o tabaco aquecido têm nicotina. E é aí que mora o perigo: a dependência.

“Não importa se você traga ou inala a nicotina. Ela é uma substância que causa dependência porque obriga o cérebro a querer mais, sempre mais”, explica Ana Cecília Marques, coordenadora da Comissão de Dependência Química da Associação Brasileira de Psiquiatria.

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Nos EUA, a indústria do tabaco mirou em um público e acertou em outro. Alardeada como uma opção menos tóxica para quem já tentou dizer adeus ao cigarro e não conseguiu, a novidade tem atraído mesmo adolescentes. E não por acaso. Ao longo dos anos, o protótipo criado por Hon Lik ganhou design moderno e descolado.

Em sua quarta geração, os novos modelos se assemelham a tudo, menos a cigarro. Uns parecem pen-drives e são recarregáveis via USB. Outros têm refis de menta, baunilha e chocolate. Alguns trazem estampas de super-heróis. Tanto é que o uso de dispositivos eletrônicos entre alunos do ensino médio americano aumentou 900% entre 2011 e 2015.

“O interesse da indústria tabagista é um só: lucro. Ela quer que o jovem comece a fumar o mais cedo possível. Se um adolescente passa a fumar aos 12 ou 14 anos, a chance de se tornar um adulto dependente é muito maior”, analisa o pediatra João Paulo Becker Lotufo, especialista em ações de combate a álcool, tabaco e outras drogas da Sociedade Brasileira de Pediatria.

Breve história do tabagismo

1530: colonizadores portugueses levam o tabaco, planta de origem andina e popular entre tribos indígenas, para a Europa. Lá, entre outros usos, é empregado como remédio para enxaqueca.

1910: um jovem imigrante português, Albino Souza Cruz, então com 41 anos, inaugura, no Rio de Janeiro, a primeira fábrica de cigarros do país — o grupo existe até hoje.

1963: o primeiro protótipo do cigarro eletrônico, ainda sem nicotina, é criado pelo inventor americano Herbert Gilbert. Sua engenhoca, porém, não chega a ser comercializada.

1989: o Brasil chega ao maior índice histórico de fumantes na população: 34,8% dos cidadãos, a maioria homens. Nos dias de hoje, menos de 10% convivem com o vício.

1996: as embalagens de cigarro no país são obrigadas a conter imagens e frases de advertência como “infarto”, “gangrena” e “impotência” para alertar os usuários dos riscos à saúde.

2009: sete anos após o início das políticas de restrição a fumar em público no Brasil, a Anvisa, de olho numa tendência global, proíbe a venda, a importação e a propaganda dos cigarros eletrônicos no país.

2014: a partir de dezembro desse ano, entra em vigor a Lei Antifumo, que proíbe, entre outras coisas, fumar em ambientes públicos e privados em todo o país.

2015: Juul Labs, a maior empresa do ramo de cigarros eletrônicos, é lançada nos Estados Unidos. Ela responde por cerca de 70% desse mercado.

2017: mais jovens aderem ao cigarro eletrônico. A Anvisa reitera que ele transmite “falsa sensação de segurança” e estuda se mantém a proibição.

A discussão sobre o cigarro eletrônico no Brasil

No Brasil, a venda, a importação e a propaganda de cigarros eletrônicos são proibidas desde 2009. Na ocasião, a Anvisa alegou que faltavam evidências sobre a segurança dos vaporizadores. Apesar da proibição, as pessoas conseguem adquirir por sites e redes sociais e em comércios populares. Desde 2017, o órgão já determinou a retirada de 727 anúncios online. Além disso, monitora a ocorrência de casos suspeitos de infecção respiratória grave em 252 unidades de saúde.

Em agosto, a Anvisa realizou duas audiências públicas com o objetivo de definir se mantém ou não a proibição. A decisão deve sair em dezembro.

De um lado, representantes da indústria do tabaco, como Fernando Vieira, diretor de assuntos externos da Philip Morris, uma das maiores fabricantes de cigarro do mundo, são contrários ao veto. Eles argumentam que, segundo pesquisas, o e-cigarro é até 95% menos tóxico que o de papel e pode ajudar fumantes a abandonar o vício. “A tendência é fabricarmos menos cigarros de papel e mais dispositivos de tabaco aquecido”, adianta o executivo.

“O tabaco aquecido não é indicado para quem não fuma ou é menor de idade. E sim para o adulto que, por alguma razão, não quer ou não consegue parar de fumar. Não é um produto livre de risco. Risco zero é não fumar”, diz Vieira.

Do outro lado, porta-vozes de sociedades médicas, como Jaqueline Scholz, coordenadora do Comitê de Controle do Tabagismo da Sociedade Brasileira de Cardiologia, são favoráveis à restrição. Alegam que os estudos sobre os riscos e benefícios dos DEFs são escassos e pouco conclusivos — e os poucos existentes são patrocinados pela indústria do tabaco.

“Tudo o que os fumantes querem é ouvir que existe um cigarro seguro. É nessas que mudam de produto. Deixaram de fumar? De maneira nenhuma. Apenas mudaram a maneira de fumar. Só que não há um nível seguro para o consumo de cigarro eletrônico”, argumenta.

Lá fora, foi liberada nos EUA a venda do dispositivo de tabaco aquecido da Philip Morris, o IQOS — acrônimo para I Quit Ordinary Smoking, ou, em livre tradução, “parei de fumar cigarro comum”. Por aqui, o produto esbarra na Anvisa. O médico Luiz Fernando Pereira, coordenador da Comissão de Tabagismo da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, é da opinião que o órgão deveria manter a proibição e avaliar melhor os impactos na saúde.

Se liberar, ressalva, que seja como um produto de tabaco, sujeito às regras já existentes, como não ser usado em ambientes fechados nem vendido a jovens. “Ainda que no futuro a ciência demonstre que o cigarro eletrônico ajude a parar de fumar, no momento não temos essas provas. Enquanto houver dúvida, o produto não deve ser comercializado”, avalia.

Sobre o suposto papel na redução de danos, Pereira só enxerga sua validade em último caso. “O ideal é a cessação do tabagismo”, declara.

A OMS não reconhece os DEFs como um tratamento antitabaco. A despedida do cigarro pode ser imediata ou gradual e exigir apoio profissional. O Sistema Único de Saúde (SUS) inclusive oferece tratamento gratuito à base de psicoterapia. Médicos podem prescrever, se necessário, remédios que auxiliam a lidar com a abstinência e superar o vício — de adesivos e chicletes de nicotina a antidepressivos.

“O melhor tratamento para se livrar do tabaco é ficar longe dele: não fumar, aspirar, mascar ou vaporizar. Mas, se o usuário começou a fumar ou se já fuma há algum tempo, nunca é tarde para procurar ajuda. A chance de parar duplica quando a pessoa recebe orientação para enfrentar a abstinência”, aponta o pneumologista Alberto Araújo, da Comissão para Controle de Drogas Lícitas e Ilícitas do Conselho Federal de Medicina.

A propósito, Hon Lik, o inventor do cigarro eletrônico, não parou de fumar: hoje traga tanto o modelo comum quanto o high-tech.

Cigarro eletrônico versus comum

Ainda existem poucas pesquisas robustas que investigaram os efeitos do cigarro eletrônico na saúde. Um estudo realizado pela Universidade de Portland, nos EUA, e publicado no periódico The New England Journal of Medicine, revelou que, por causa de uma substância chamada formaldeído, o vapor desses dispositivos pode ser até 15 vezes mais cancerígeno que a fumaça do cigarro.

Outro trabalho americano, da Escola de Medicina da Universidade da Pensilvânia, constatou que os vaporizadores podem elevar o risco de infarto e AVC. Entre 2009 e 2016, foram registrados por lá 195 episódios de incêndio ou explosão com e-cigarros.

A dependência de nicotina, mais estudada com o uso dos cigarros convencionais, está ligada a mais de 50 enfermidades, como problemas cardiovasculares, doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e diversos tipos de câncer (pulmão, laringe, esôfago, bexiga…).

No ranking das mortes causadas pelo cigarro, doenças do coração ocupam o primeiro lugar, seguidas pela DPOC e, depois, pelo câncer de pulmão. O fumo ainda contribui para impotência sexual, osteoporose, periodontite e catarata, entre outras chateações.

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