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Câncer: a luta não pode parar com a pandemia

Diagnósticos, cirurgias e outros tratamentos foram afetados pela Covid-19, mas, em muitos casos, o combate ao câncer não pode esperar. Como contornar isso?

Por Chloé Pinheiro
Atualizado em 23 jul 2020, 18h40 - Publicado em 23 jul 2020, 09h00

Não bastassem as tristes estatísticas de mortes por Covid-19, os números do impacto da pandemia em outros departamentos da saúde nos fazem pensar naquela máxima de que uma desgraça não vem sozinha. Que o diga o combate ao câncer. Com as redes públicas reorganizadas para atender quem pegou o coronavírus e o próprio medo das pessoas de se infectar, tanto a prevenção e a detecção como o tratamento dos tumores sofreram abalos.

As sociedades brasileiras de Patologia e Cirurgia Oncológica calculam que, entre março e maio, 50 mil diagnósticos deixaram de ser feitos no país. É uma cifra que pode ser ainda maior, se considerarmos a projeção do Instituto Nacional de Câncer (Inca) de 600 mil novos casos da doença por ano. “Podemos pensar que estamos com ao menos um quarto desse total de pessoas que precisam de atendimento prejudicado”, avalia o oncologista Gelcio Mendes, coordenador de assistência do Inca.

“É uma situação muito preocupante, porque o câncer não vai esperar a pandemia passar”, afirma Victor Piana de Andrade, diretor médico e superintendente de operações do A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo, onde o volume de primeiras consultas chegou a cair 80% em abril. Nos Estados Unidos, mais à frente na pandemia, reduções drásticas nos exames de rastreamento mostram cenário semelhante — 70% a menos de mamografias e 90% a menos de colonoscopias só em Nova York. Voltando ao Brasil, estima-se que até 90 mil cidadãos tenham deixado de fazer uma biópsia.

A falta ou o atraso dos exames assustam: a doença pode se manifestar lá na frente, em estágio avançado e com poucas perspectivas de cura. Não é à toa que o Instituto Nacional de Câncer dos EUA aponta cerca de 10 mil mortes extras por tumores entre 2020 e 2030. Mobilização e conscientização para reverter essas previsões são decisivas porque, por trás dos números, existem pessoas que podem ser salvas, como a santista Juliana Fefin, de 40 anos.

Em março, no início da epidemia por aqui, ela notou um caroço dolorido e rígido no seio, diferente dos nódulos anteriores. “Sabia que algo estava errado, mas os hospitais da minha região haviam parado de aceitar novos pacientes e alguns não agendavam consultas”, recorda.

Com a ajuda de um familiar médico, conseguiu fazer a mamografia, mas teve o atendimento negado no primeiro hospital para o qual ligou, em Santos, e teve que subir a serra para se consultar no A.C.Camargo. Na capital paulista, descobriu um câncer de mama agressivo, mas com boas chances de cura se identificado precocemente — o que
felizmente ocorreu no caso dela.

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(Ilustração: Catarina Bessell/SAÚDE é Vital)

Não é que você tenha de sair de casa agora para fazer um exame preventivo. Métodos de rastreamento, caso da mamografia, do papanicolau (colo do útero) e da colonoscopia (intestino), estão sendo postergados em função da Covid-19. “Avaliamos o custo-benefício e orientamos o adiamento até o fim da pandemia pelo risco da infecção em si. Mas já estamos acompanhando a evolução nos estados para recomendar a retomada”, esclarece Liz Almeida, coordenadora de prevenção do Inca.

Não é uma decisão simples, claro. “No Brasil já temos uma alta taxa de tumores descobertos em estágio avançado, e isso pode piorar agora. Na perspectiva de uma epidemia duradoura como a que estamos vendo, precisamos definir fluxos de segurança e continuar com o rastreio”, diz a médica Angélica Nogueira, diretora da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (Sboc).

A história de Juliana exemplifica bem o tipo de situação que exige atenção imediata: o aparecimento de sintomas indicando algo estranho. A questão é que, com as recomendações de isolamento social, tem gente que não procura o serviço de saúde mesmo nessas circunstâncias. É uma realidade já bem nítida com as doenças cardiovasculares. “Em Nova York, houve um aumento de oito vezes nas mortes por infarto em casa”, nota o oncologista Paulo Hoff, diretor-geral do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp).

Para que um quadro tão trágico não se repita com o câncer, o Instituto Oncoclínicas, em parceria com associações médicas, lançou a campanha O Câncer Não Pode Esperar, que visa conscientizar a população sobre a importância de procurar o médico na presença de sinais suspeitos e não interromper o tratamento por conta própria.

Existem tumores e tumores, e, de fato, alguns são mais velozes ou aproveitadores com o atraso no diagnóstico. “Se os hematológicos, como leucemia e linfoma, não forem detectados rápido, podemos perder a oportunidade de cura”, exemplifica Hoff. “Nos de mama, se perdemos o estágio mais inicial, as chances de resolução podem cair de 90 para 20%”, compara.

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Quando flagrada no começo, boa parte dos tumores sólidos (mama, próstata…) é resolvida com cirurgias menos complexas. “Isso é um ótimo indicador do diagnóstico precoce, mas também é um ponto prejudicado neste período”, observa Luciana Holtz, presidente do Instituto Oncoguia.

Para ter ideia, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica estima que cerca de 150 mil cirurgias para tumores não tenham sido realizadas entre março e junho — sete em cada dez procedimentos não foram feitos. Isso ocorreu primeiro porque muitos hospitais, sobretudo os não especializados em câncer, reservaram seus leitos para a Covid-19 e adiaram cirurgias eletivas.

E segundo porque estudos em outros países alertaram para um maior risco de complicações do coronavírus no pós-operatório. Agora, com meses de aprendizado, as instituições estão reagendando as cirurgias oncológicas com um protocolo bem rígido de segurança, que inclui testes para detectar o vírus antes de passar pelo bisturi.

Outros tratamentos, como quimio e radioterapia, foram mantidos durante a Covid-19 ao menos nos hospitais abordados por VEJA SAÚDE. Mas essa não é a realidade em todo o Brasil. Pesquisa do Oncoguia com 553 pacientes revela que 43% deles relatam prejuízo nesse sentido, sendo que a restrição dos centros de saúde figurava como o principal motivo.

“Ouvimos por aí que tem gente abandonando o tratamento por conta própria, mas nosso levantamento contrapõe essa ideia”, interpreta Luciana. O estudo também confirma a desigualdade no atendimento: 60% dos entrevistados tratados no SUS disseram que houve problema, número que caía para 33% entre os usuários da rede privada.

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“Não houve nenhuma padronização do atendimento à pessoa com câncer na rede pública durante a pandemia, e vemos que, fora dos centros de referência, na prática não há separação de alas específicas para eles, as informações não chegam e o paciente fica inseguro”, analisa Marlene Oliveira, presidente do Instituto Lado a Lado pela Vida, que realiza campanhas de conscientização e advoga pelos direitos de quem enfrenta a doença.

Mesmo quando não houve interrupção na oferta da terapia, a disparidade no acesso afastou gente do hospital. “Nossos usuários do interior já têm dificuldade de se deslocar até aqui pela condição socioeconômica, e isso se acentuou com a Covid-19, ainda mais com as barreiras sanitárias impostas em alguns municípios”, relata o médico Reginaldo Costa, superintendente do Hospital Haroldo Juacaba, em Fortaleza, ligado ao Instituto do Câncer do Ceará.

(Ilustração: Catarina Bessell/SAÚDE é Vital)

A luta no “novo normal”

As associações de defesa dos pacientes criticam a divulgação insuficiente dos protocolos e orientações de segurança para manter os tratamentos nesta fase. “Estamos pedindo que os hospitais sejam mais transparentes em relação às medidas adotadas”, conta Luciana. Não foram poucas as mudanças impostas pela Covid-19, mas algumas instituições já contavam com um preparo para isso.

“Sempre precisamos tomar extremo cuidado com fungos, vírus e bactérias, pois eles são muito perigosos para quem está em tratamento oncológico”, explica Andrade, do A.C.Camargo. Quando Juliana chegou lá, encontrou uma infraestrutura de ponta, que segue preceitos adotados em outros centros no Brasil e no mundo, como a criação de zonas covid-free (ou, em bom português, livres de Covid-19).

Para tanto, há entradas e salas de emergência separadas para pessoas com sintomas suspeitos como tosse ou febre, além da designação de profissionais que só trabalham nesses ambientes, altamente paramentados com os equipamentos de proteção individual.

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O “novo normal” para clínicas e hospitais que atendem indivíduos com câncer inclui medição de temperatura na entrada, distribuição de máscaras e restrição severa de circulação. Fora o adiamento de consultas presenciais para monitorar casos já curados, os centros têm lançado mão da telemedicina, liberada pelo Conselho Federal de Medicina na pandemia.

“Com ela podemos solicitar e avaliar exames para verificar a progressão da doença e acompanhar pacientes de alto risco para complicações com o coronavírus”, descreve Auro Del Giglio, coordenador da oncologia do HCor, em São Paulo. O atendimento a distância também ajuda a decidir se alguém que mora em outra cidade precisa mesmo viajar para ver o médico ao vivo. Até alterações no tratamento foram promovidas com a pandemia. “Pudemos ajustar quimioterapias para impactar menos o sistema imune do paciente e trocar drogas na veia por comprimidos”, exemplifica Mendes.

Todo esse cuidado é crucial no dia a dia de quem encara um câncer. Isso porque pessoas com a doença estão no grupo de risco para casos graves de Covid-19 — tanto o problema em si como algumas linhas de tratamento podem fragilizar o organismo. E isso vale para adultos, idosos e até crianças. “Se uma criança em tratamento contrair o vírus, o quadro pode progredir muito rapidamente”, afirma o oncologista pediátrico Sérgio Petrilli, superintendente médico do Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer (Graacc), em São Paulo, que manteve seu funcionamento total no período (inclusive com as casas de apoio para pacientes que vêm de longe se tratar na instituição).

No início, havia o temor de uma alta incidência de Covid-19 entre as pessoas com câncer, mas aconteceu o contrário. “Houve um índice baixo de contágio, porque o indivíduo já está mais atento e cuidadoso com a própria saúde”, acredita Petrilli, que comemora o fato de nenhum de seus pacientes ter falecido pelo coronavírus. No Inca e no A.C.Camargo, a taxa de contaminação ficou em 5%, semelhante à da população em geral.

A precaução é ótima e tem de continuar, porque os estudos indicam que realmente pessoas com câncer tendem a apresentar mais complicações com a Covid-19. Numa análise de mil pacientes que pegaram o vírus publicada no British Medical Journal (BMJ), a mortalidade do grupo foi de 13%, mais que o dobro do que é registrado em quem não tem a doença. Mas nem todo mundo que batalha com um tumor está necessariamente ameaçado.

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“Tratamentos como alguns tipos de quimioterapia são os que mais deixam os pacientes vulneráveis”, pontua Angélica. Pela pesquisa do BMJ, ter idade avançada, ser do sexo masculino, apresentar outras doenças e histórico de tabagismo pareciam aumentar ainda mais desfechos piores.

O trabalho é parte do Consórcio Câncer e Covid-19 (CCC19), iniciativa internacional para entender melhor o elo entre as duas condições. Os primeiros dados desse megaesforço foram incluídos de última hora na agenda do congresso da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (Asco), o maior encontro anual do mundo nessa área e que ocorreu pela primeira vez exclusivamente pela internet. A reunião juntou mais de 40 mil profissionais interessados não só na interface entre câncer e coronavírus mas também nas boas notícias da ciência.

Pelas evidências disponíveis, pessoas curadas ou em tratamentos que não afetam a imunidade (como a hormonioterapia) estão mais seguras diante da Covid-19. É o caso de Cassia de Toledo Bergamaschi, de 55 anos, que utiliza hormônios contra um câncer de mama. “A primeira coisa que pensei é como meu organismo iria reagir, depois entendemos melhor que meu risco não era tão grande, mas resolvi usar esse medo a meu favor e me preservar”, relata a professora universitária de São Paulo, que está isolada e trabalhando em casa.

Evitar circulação desnecessária e não descuidar da higiene e do uso da máscara são comportamentos que os pacientes devem incorporar à rotina e não abandonar tão cedo — para eles, em especial, ainda não é hora de voltar à rua. Apesar do relaxamento da quarentena em várias regiões do país, a Covid-19 não está sob controle e as medidas de prevenção continuam importantes. Não deixemos que o câncer se aproveite ainda mais disso.

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