Ayahuasca: o que é e como age o chá alucinógeno usado em rituais
De origem indígena, bebida que combina duas plantas atua no sistema nervoso central e é estudada por potencial terapêutico

Utilizado há milhares de anos em rituais indígenas e xamânicos de diversas etnias brasileiras (e também peruanas), o chá de ayahuasca (também chamado de Chá Hoasca, ou apenas daime) é uma bebida sagrada para religiões como Santo Daime, União do Vegetal e Barquinha.
No Brasil, o seu uso em rituais religiosos foi oficialmente regulamentado em 25 de janeiro de 2010 pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), do Governo Federal.
Essa regulamentação estabelece diversas normas para que haja um consumo responsável do chá, e não é permitida a comercialização para uso doméstico ou individual.
Hoje, no entanto, cresce a busca pelo consumo do daime de forma recreativa, principalmente em rituais na Amazônia.
Na crença religiosa, o chá de ayahuasca é um agente curativo, capaz de desintoxicar o corpo, corrigir órgãos danificados, melhorar quadros de dependência e até dissipar ilusões. Mas nada disso tem comprovação científica.
O que de fato é ciência é que essa bebida tem fortes componentes psicodélicos. Em algumas pesquisas iniciais, o uso de microdoses controladas já mostrou potenciais ações para o tratamento de depressão e dependência química. Mas seu uso indiscriminado pode levar à problemas de saúde.
+Leia Também: Sidarta Ribeiro: “Estamos sonhando muito mal”
De que é feito o ayahuasca?
De uma infusão derivada de duas plantas: folhas de chacrona (Psychotria viridis) e casca do cipó mariri (Banisteriopsis caapi).
A chacrona é rica em dimetiltriptamina (DMT) e o mariri em beta-carbolinas, como a harmina. Os dois compostos, juntos, tem ação sinérgica e intenso poder psicodélico.
“Importante lembrar que esses chás não tem um controle de qualidade nem modo de preparo único, cada religião faz de uma forma. Então você nunca sabe qual o teor exato ou a concentração dos princípios ativos”, pondera o professor João Ernesto de Carvalho, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
+Leia Também: Psicoterapia assistida por psicodélicos: de volta para o futuro?
Como age essa bebida?
O DMT da chacrona (muito usado puro como uma droga fumada de ação rápida) é um agonista dos receptores de serotonina, principalmente o receptor 5-ht2a, presente no sistema nervoso central e periférico.
Ou seja, ele ocupa o lugar desse importante neurotransmissor se ligando ao seu receptor, o que pode afetar humor, sono, apetite e sensação de bem-estar.
Mas, há um detalhe: quando ingerido, o DMT é metabolizado pela enzima monoamina oxidase (MAO) antes mesmo de chegar ao cérebro. Para que isso não ocorra, entra o efeito das beta-carbonilas do mariri, que inibem temporariamente a atividade da MAO.
Essa enzima também é a responsável pela degradação de serotonina, dopamina e noradrenalina, todos neurotransmissores importantes ao cérebro. Sem sua ação, o DMT fica livre para ligar-se a receptores serotoninérgicos nos neurônios e há um excesso de serotonina e outros neurotransmissores no órgão.
Esse combo gera diversos efeitos neuroquímicos que podem alterar os padrões normais de percepção e realidade. Daí os adjetivos “alucinógeno” ou “expansor de consciência” para esse psicodélico.
+Leia Também: Serotonina: o que é e como aumentar o neurotransmissor da felicidade
Riscos e efeitos colaterais do ayahuasca
Os mais comuns estão relacionados a diversos graus de náuseas, vômitos e simultâneas diarréias. Acredita-se que isso ocorra por conta do excesso de serotonina, que tem forte ação na motilidade intestinal.
“A orientação na maioria dos rituais é engolir a dose de uma vez, em seguida tomar um copo d’água e depois mascar gengibre seco, que ajuda um pouco na náusea por conta de suas propriedades”, afirma Carvalho.
Na década de 1990, o professor participou de uma das primeiras pesquisas com a bebida no Brasil, patrocinada pela fundação Rockefeller, que buscava utilizar o ativo para fins terapêuticos, dos quais falaremos mais adiante.
João Ernesto também chama a atenção para o fato de que o excesso de serotonina pode gerar diversos efeitos maléficos, desde questões cardíacas (aumento da frequência cardíaca e hipertensão) até espasmos musculares e tremores.
“Há um risco grande de convulsão em pessoas com problemas neurológicos, como epilepsia; em quem já toma antidepressivos ou para quem tem esquizofrenia, por conta do excesso de dopamina, que pode levar a pessoas a um colapso”, pontua o especialista.
Ele ainda reforça que idosos e crianças não podem ser expostos a bebida. Na criança, o cérebro ainda está evoluindo, então não é recomendado mexer com neurotransmissores.
Já nos idosos, há a senescência, uma diminuição de massa cerebral, e o risco maior da pessoas ter comorbidades contraindicadas. “Uma vez, fui procurado por uma família cujo avô havia tomado a bebida com a neta. Ele saiu completamente de órbita e acabou internado no hospital por alguns dias”, conta.
Realmente, problemas podem acontecer. Em 2022, o ator Micael Amorim Macedo, de 26, faleceu durante após tomar três doses da bebida psicodélica em um ritual no interior de Brasília.
Por essas e outras, em várias religiões é preciso assinar um termo de compromisso antes do ritual, assumindo que está ciente de consequências e que a doutrina não se responsabiliza por qualquer efeito adverso.
+Leia Também: Os riscos de usar medicamentos para dormir por conta própria
Potências terapêuticos do ayahuasca
Dizem que a diferença entre o remédio e veneno é a dose, e isso parece se aplicar neste caso.
Enquanto o excesso da bebida pode ter diversas consequências negativas, pequenas doses podem ter potencial para ajudar pessoas com depressão.
Foi isso que mostrou um pequeno estudo brasileiro conduzido pelo Laboratório de Neuroimagem do Hospital Universitário Onofre Lopes (HUOL), em Natal, associado ao Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
A pesquisa foi feita com 29 pessoas diagnosticadas com depressão severa, porém resistentes ao tratamento tradicional com antidepressivos. Eles não tinham experiência anterior com ayahuasca nem histórico de distúrbios neurológicos, esquizofrenia e transtorno afetivo bipolar (no paciente e na família), além de não fazerem uso rotineiro de substâncias de abuso ou terem risco suicida.
Esse foi o primeiro estudo duplo-cego e com placebo que mediu efeitos terapêuticos da bebida. A pesquisa foi publicada em 2018 na revista Psychological Medicine, pertencente a Universidade de Cambridge, no Reino Unido.
Nela, metade dos participantes tomou o chá real; e o grupo controle tomou um placebo que simulava aroma e sabor da bebida, porém sem DMT e beta-carbonilas. A fração ingerida foi 1ml por peso.
Os participantes foram avaliados no primeiro e no sétimo dia, resultado: 64% das pessoas que tomaram a bebida psicodélica apresentaram índices menores de depressão, e 26% no grupo placebo.
Foi um tratamento experimental, com poucos participantes, considerado de fase 1. Mas outros estudos chegaram a conclusões semelhantes, e a bebida também já foi testada contra o transtorno do estresse pós-traumático e na dependência química. É certo dizer que há potencial para estudos mais robustos, mas ainda não dá pra cravar que ela é remédio.
Recentemente, a Cooperação Interdisciplinar para Pesquisa e Divulgação da Ayahuasca (Icaro, na sigla em inglês), grupo de estudos da Unicamp, lançou o livro Visões Multidisciplinares da Ayahuasca, explicando a relação da planta com a natureza e as ciências humanas, suas implicações na saúde mental e as investigações em pesquisas experimentais.
Isso é prova de que entender mais sobre essa milenar bebida está na mira da comunidade científica.