É assombroso pensar que, há pouco mais de 30 anos, um vírus espalhado por grande parte do planeta era capaz de causar dificuldades de locomoção e até paralisia em mil crianças por dia. Graças a um trabalho conjunto que envolveu instituições gigantescas, como o Rotary International, a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC), houve uma redução de 99% no número de casos da poliomielite entre 1987 e 2017.
“Um feito incrível, que só foi possível com a ação de milhões de voluntários, que viajaram aos locais mais remotos do globo, e ao investimento de mais de 11 bilhões de dólares”, conta John Hewko, secretário-geral do Rotary, grupo que iniciou lá atrás um audacioso plano de vacinação contra esse agente infeccioso.
Chegamos, finalmente, aos últimos estágios da luta para erradicar a pólio para sempre. Esse marco só foi alcançado em uma única oportunidade na história, quando a varíola deixou de existir no ano de 1979, após uma extensa campanha de imunização.
Porém, o que parecia um final feliz e concreto se torna cada vez mais difícil e desafiador. O 1% restante está dando uma trabalheira danada: os dois países que têm o vírus selvagem da doença circulando são Afeganistão e Paquistão, em regiões com povoados nômades, conflitos armados e resistência religiosa.
Além desses percalços no continente asiático, dois surtos em maio e junho de 2018 ligaram o sinal de alerta das autoridades. Eles ocorreram em Papua-Nova Guiné, na Oceania, e na República Democrática do Congo, na África. O que aconteceu nessas duas nações foi uma raríssima falha ou mutação do vírus enfraquecido que compõe a vacina oral, dada em forma de gotinhas. São retrocessos que, se não forem controlados rapidamente, vão botar tudo a perder nessa verdadeira cruzada contra a pólio.
O papel de cada entidade no cerco à paralisia infantil
OMS: Dá o suporte técnico e operacional às estratégias de cada país. Ainda monitora os novos casos.
Unicef: Responsável por fazer campanhas de conscientização, além de comprar e distribuir as doses de vacinas.
CDC: Estuda e analisa o surgimento de possíveis surtos e as suas origens para preparar um contra-ataque rápido e eficaz.
Rotary: Faz a arrecadação de dinheiro e estimula seus sócios a se voluntariarem na imunização das crianças.
O ciclo da enfermidade e a importância da prevenção
Vilão: Apesar de a doença ser conhecida desde 1580 a.C., o vírus só foi descoberto em 1909, pelos médicos austríacos Karl Landsteiner (1868-1943) e Erwin Popper (1879-1955). Há três linhagens — uma delas já foi extinta.
A transmissão: O agente infeccioso entra no organismo por meio de água e alimentos contaminados, geralmente em regiões com condições sanitárias precárias. Ele passa pelo tubo digestivo e se aloja no intestino.
O problema: Na maioria das vezes, o malfeitor não dá nenhum sinal de sua presença. Em cerca de 25% dos acometidos, aparecem sintomas leves, como náusea e ânsia de vômito. Em menos de 1%, porém, o vírus ataca células do sistema nervoso periférico, o que afeta o movimento dos membros inferiores.
As vacinas
Oral/Sabin: Ela é administrada facilmente pela boca, por meio de duas ou três gotinhas. O líquido contém o vírus vivo atenuado.
Injetável/Salk: A picada na pele introduz partículas do vírus morto. Só pode ser manipulada por profissionais de saúde capacitados.
Esquema: O bebê deve tomar três doses da versão injetável aos 2, 4 e 6 meses de vida. Depois, são mais dois reforços com as gotinhas aos 15 meses e aos 5 anos de idade.
Fonte: Isabela Garrido, assessora médica em imunização do Fleury Medicina e Saúde
O cenário atual no Brasil
Mas não pense que a pólio está distante de nós: ela pode até estar eliminada do Brasil desde 1989, mas um cálculo do Ministério da Saúde aponta que 312 cidades do país estão atualmente com menos de 50% das crianças vacinadas contra a doença. Ora, é necessário que 95% da população tenha recebido as cinco doses para não ter o risco de novos casos!
“Num cenário desses, o vírus pode voltar a circular facilmente, o que representaria uma catástrofe”, antevê a médica Lessandra Michelin, da Sociedade Brasileira de Infectologia. Mas por que os números estão tão baixos?
Em primeiro lugar, a vacina paga o preço de seu próprio sucesso. “Essa nova leva de pais e mães nunca viu um amigo ou familiar com poliomielite ou com as suas sequelas, o que gera uma despreocupação”, acredita a pediatra Isabella Ballalai, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações. A falsa noção de que essa enfermidade se restringe apenas ao passado é uma cilada das grandes.
“Também devemos considerar os movimentos antivacina e a divulgação de notícias mentirosas nas redes sociais, que acusam injustamente os imunizantes de provocarem malefícios”, lembra o médico Marco Aurélio Safadi, da Sociedade Brasileira de Pediatria.
Não criemos pânico: esses produtos são muito seguros e foram responsáveis diretos por ganhos na saúde e pelo aumento da expectativa de vida dos seres humanos. Sempre suspeite de informações muito bombásticas que aparecem na sua linha do tempo ou nos aplicativos de mensagens. Na dúvida, melhor não compartilhar.
Por fim, existem críticas sobre o esquema de funcionamento dos postos de saúde. Muitos só abrem em horário comercial e fecham para almoço ou durante finais de semana, períodos em que os pais poderiam levar seus filhos para atualizar a carteirinha. O governo já se comprometeu a elaborar novas estratégias para facilitar esse processo. Afinal, vale todo esforço na guerra contra a pólio: a vitória final vai depender de cada um de nós.
O que falta para enterrarmos de vez a poliomielite
Quando perguntado se ainda vale investir tanto numa enfermidade que atinge menos de 30 indivíduos ao ano, John Hewko é categórico: “Até que não tenhamos nenhum caso, não vamos parar. A erradicação vai servir de exemplo do que é possível para as futuras gerações”, vislumbra. Para chegarmos a esse patamar, temos que zerar as estatísticas e continuar o controle, sem novos surtos, por uns cinco ou seis anos.
Queda vertiginosa
A incidência da poliomielite diminuiu tremendamente nas últimas décadas:
- Em 1987, 35 mil casos foram reportados em 168 territórios.
- Em 2017, o número foi de 22 ocorrências em dois países.
- Por ora, o ano de 2018 contabiliza somente 13 casos.
- Desde 1988, mais de 2,5 bilhões de crianças receberam a vacina.
- Hoje, 20 milhões de pessoas vivem com sequelas da pólio.