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Poliomielite, uma gotinha de bom senso

Nossa colunista explica por que ainda não vencemos a pólio — e por que a doença, para a qual existe vacina, pode voltar a nos assombrar

Por Dra. Natalia Pasternak Taschner, bióloga*
Atualizado em 24 out 2019, 14h40 - Publicado em 24 jul 2018, 18h22
reação da vacina poliomielite o que é
Crianças hospitalizadas nas máquinas chamadas pulmões de aço: imagem clássica da pólio (Bettmann/CORBIS/Corbis(DC/LatinStock)/SAÚDE é Vital)
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Quem era criança nas décadas de 1950 e 1960 deve se lembrar bem do medo da poliomielite. Uma das imagens mais icônicas dessa era são os pulmões de aço, máquinas onde crianças acometidas pela doença podiam passar semanas internadas, muitas vezes saindo de lá com sequelas motoras que carregariam para a vida toda.

A pólio é causada por um vírus, não tem cura e só existe uma forma eficaz de preveni-la, a vacina. Normalmente o mal se propaga assim: o vírus entra pela boca e multiplica-se na faringe e no trato gastrointestinal, o que resulta em sua disseminação tanto pela saliva como pelas fezes. Essa característica faz com que a doença seja de fácil contágio. O vírus é contagioso, porém não tão agressivo. A maior parte das infecções não provoca sintomas. Cerca de 25% das pessoas afetadas apresentam manifestações que recordam uma gripe leve: febre, dor de cabeça e de garganta, nariz escorrendo, náusea…

A versão mais grave, a poliomielite paralítica é, na verdade, muito rara. Ocorre em menos de 1% dos indivíduos infectados — geralmente crianças com menos de 5 anos. Nesses casos, o vírus ataca o sistema nervoso, levando a  danos motores e respiratórios. Em situações ainda menos comuns, pode até matar.

Ainda assim, dadas a facilidade do contágio e a seriedade das sequelas — sem falar no alto custo dos tratamentos para os casos graves —, a doença tornou-se motivo de preocupação na esfera da saúde pública. Não à toa, em meados do século passado, houve grande investimento nos Estados Unidos para o desenvolvimento de vacinas contra a pólio. Desses esforços nasceram dois imunizantes mundialmente famosos e eficazes. A vacina Salk, que utiliza vírus inativados (mortos) e é administrada via injeção intramuscular. E a vacina Sabin, que se vale de vírus atenuados e é dada via oral — daí a campanha com o Zé Gotinha no Brasil.

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No Brasil e na maioria dos países em desenvolvimento, as redes públicas de saúde recorrem à vacina Sabin. Ela é cinco vezes mais barata que a Salk e não requer seringas estéreis tampouco profissionais especializados para aplicá-la. Além disso, por ser ingerida, confere imunidade na mucosa do intestino, passo importante para bloquear a cadeia de transmissão. A vacina Salk, por sua vez, vai direto para a corrente sanguínea, concedendo imunidade apenas para quem foi vacinado.

Para ficar mais fácil de entender: se você tomar a Salk, estará seguro. Ao ser infectado pelo vírus da pólio por aí, não ficará doente, porque terá anticorpos para defendê-lo. No entanto, esse vírus poderá replicar-se em seu intestino e, espalhando-se pelas fezes, infectar outras pessoas.

Agora, se você tomar a vacina Sabin, o vírus vacinal (aquele atenuado e que não causa doença) chega ao seu intestino, estimula a produção de anticorpos ali e isso impede que a doença se alastre. A estratégia das gotinhas têm mais uma vantagem. Quando temos uma campanha de vacinação, todo mundo toma as vacinas ao mesmo tempo e, assim, os vírus vacinais fraquinhos podem circular e conferir uma imunidade passiva para quem não se vacinou. Isso é importante especialmente em locais com pouco saneamento básico.

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Graças às vacinas e um esforço público-privado liderado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 1988 — a chamada Iniciativa Global para Erradicação da Pólio —, a doença foi quase exterminada do planeta. Em 1988, a OMS notificou mais de 350 mil casos no mundo. A pólio era endêmica em 125 países. Desde então, mais de 10 bilhões de doses da vacina Sabin foram distribuídas pelo planeta, imunizando 3 bilhões de crianças. Em 2005, apenas 2 mil casos foram reportados.

Apesar da queda vertiginosa, o número ainda está acima do esperado. A expectativa da OMS era erradicar completamente a pólio até o ano 2000.  Isso ocorre porque existem três países onde a poliomielite persiste por falta de vacinação: Nigéria, Paquistão e Afeganistão.

Uma das razões para essa situação é que grupos religiosos extremistas espalham boatos contrários à imunização. Eles pregam que as vacinas fazem parte de um plano do Ocidente imperialista para esterilizar meninas e espalhar outro vírus, o HIV. Além disso, agentes da OMS são frequentemente atacados em campanhas de vacinação por grupos religiosos radicais.

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Sofre um, sofrem muitos

Mas qual seria o problema de termos somente três países enfrentando a pólio no mundo? Ora, o problema é que, além das máculas internas, eles colocam o resto do mundo em risco. Enquanto não erradicarmos por completo a doença, sempre haverá a possibilidade de novos surtos. Quando a cobertura vacinal cai, cai também o que chamamos de “imunidade de rebanho”. Cenário ideal para o vírus voltar a circular.

Se em terras nigerianas, paquistanesas e afegãs o desafio reside no extremismo religioso, no mundo ocidental o entrave ganha corpo com o crescente movimento antivacina. Movidos por mitos como o de que as vacinas é que espalham doenças ou a uma ideologia naturalista, muitos pais e mães, inclusive no Brasil, estão deixando de imunizar seus filhos. Para completar, é comum que conflitos bélicos ou condições precárias resultem na queda da cobertura vacinal, como de fato ocorreu com a Síria, vítima de uma guerra há anos e de um surto de pólio em 2017.

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E o Brasil com isso? Pois em nosso país, onde a poliomielite é considerada erradicada desde 1990, o Ministério da Saúde acaba de identificar 312 cidades onde a cobertura da vacinação foi menor do que 50%. O recomendado pela OMS é 95%. Qualquer coisa abaixo do índice de 80% já é preocupante, que dirá menos que 50%?! Assim, da mesma maneira como aconteceu com o sarampo nos Estados Unidos e na Europa, a pólio pode ressurgir por aqui. Onde falta vacinação adequada, doenças se alastram ou voltam a aparecer.

Foi exatamente isso que aconteceu com o Congo neste ano. O país africano está enfrentando um surto de pólio que já paralisou 29 crianças. O episódio foi causado por um vírus vacinal, mas só aconteceu porque a cobertura da vacinação está abaixo do esperado. O fenômeno nos remete à única desvantagem da vacina Sabin. Como ela é feita de vírus vivo atenuado, quando ele circula no ambiente, pode eventualmente sofrer mutações e readquirir virulência. Ou seja, ele deixa de ser “fraquinho”, incapaz de causar doença, e pode voltar a provocar pólio. Mas, e isso é muito importante, só vai causar doença em pessoas não vacinadas! Quem tomou a vacina está e estará sempre protegido.

Vírus contra vírus

Para visualizar melhor as consequências dessa história, imagine uma população parcialmente vacinada. As crianças que tomaram a vacina multiplicam o vírus atenuado em seus intestinos e liberam suas cópias no ambiente por semanas. A contaminação oral viabiliza o contágio e o vírus chega a crianças não vacinadas.

Nesse meio tempo, o vírus atenuado sofre uma mutação e recupera sua força. Ora, mutações sempre ocorrem na natureza. Se esse quadro se repetir, o vírus terá tempo suficiente para adquirir mutações, voltando a se tornar realmente perigoso. Eis que, repaginado, ele infecta uma criança que não foi imunizada. No intestino dela, ele se replica e é escoado para o ambiente. Agora temos um vírus vivo, capaz de causar doença, circulando por aí entre crianças não vacinadas. É assim que ocorrem surtos com os vírus vacinais. A única maneira de combatê-los é a mesma que se aplica ao vírus selvagem, aquele encontrado na natureza: vacinando a população.

Toda essa história serve para refletir que precisamos erradicar de vez essa doença e, aí, parar de usar a vacina viva, a Sabin E, para erradicar a pólio, temos que vacinar todo mundo. É isso mesmo: temos que vacinar para poder parar de vacinar. Uma vez que tivermos a certeza de que o vírus foi abolido — como já fizemos com a varíola —, poderemos nos dar ao luxo de aposentar a vacina Sabin. Alguns países, como os EUA, já usam apenas a vacina Salk. Mas o custo e o manejo tornam essa alternativa inviável para nações em desenvolvimento, justamente aquelas em que a imunização se faz mais necessária.

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É nesse contexto que o caso do Brasil fica mais preocupante. Vivemos em um mundo globalizado. Temos três países onde o vírus selvagem circula e outros com surtos do vírus derivado da vacina em função de uma cobertura vacinal inadequada. Se um desses vírus desembarcar por aqui, em uma das 312 cidades com taxa de vacinação abaixo dos 50%, o início do estrago está feito.

O Brasil sempre foi referência mundial em vacinação. Seja por boatos infundados nas redes sociais, seja pelo desmonte do SUS, seja porque essa geração de pais e mães nunca vivenciou a perda de entes queridos para doenças infecciosas, estamos começando a perder uma guerra que já estava vencida há 30 anos. Repito o que já disse antes por aqui: as vacinas continuam sendo vítimas do seu próprio sucesso. Mas não custa lembrar das crianças presas por semanas nos pulmões de aço, felizes por sair de lá com vida, ainda que com sequelas motoras.

E saber que basta uma gotinha para prevenir esse sofrimento. Não é possível que não tenhamos uma única gota de bom senso!

* Dra. Natalia Pasternak Taschner é bióloga, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, coordenadora científica do Planetário de São Paulo, responsável pelos projetos Cientistas Explicam e Pint of Science no Brasil e uma das idealizadoras e colaboradoras do blog Café na Bancada

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