A evolução e os desafios da cirurgia plástica reparadora
Ao devolverem contornos adequados e funcionais ao corpo, os procedimentos reconstrutores também levantam a saúde e a autoestima
A chegada do Gran Circus Norte-Americano a Niterói, no Rio de Janeiro, causou comoção. Sua enorme estrutura, a maior da América Latina, comportava cerca de 3 400 pessoas, e a estreia do espetáculo, no dia 15 de dezembro de 1961, teve todos os ingressos esgotados (e vários penetras sob a tenda).
Mas o que era para ser um show de alegria virou a maior tragédia que o Brasil já tinha visto até então: no dia 17, um ex-funcionário do circo ateou fogo à lona, culminando em um incêndio que deixou 503 pessoas mortas e mais de 2 mil feridos.
Nesse contexto dramático, o médico Ivo Pitanguy, que completaria 100 anos em 2023, mudou os rumos da cirurgia plástica no país. No dia do incidente, ele estava a caminho de um plantão na Santa Casa de Misericórdia do Rio.
Quando soube do caso, não pensou duas vezes: foi imediatamente a Niterói e organizou uma equipe de médicos e estudantes para prestar os primeiros socorros às vítimas.
Mas as dificuldades eram diversas: pouquíssimos profissionais tinham experiência com o cuidado de tantos queimados ao mesmo tempo e não havia material suficiente para tratar pacientes com extensas áreas de lesão.
Pitanguy não desistiu. Por meio de um contato com um hospital americano, conseguiu uma doação de 33 mil centímetros cúbicos de pele liofilizada (desidratada), pronta para uso como curativo biológico.
Foi a primeira vez que uma técnica de enxerto de pele humana havia sido realizada em grande escala na América do Sul.
“Após garantir a vida das vítimas nos primeiros 30 dias, foi preciso cuidar das sequelas e das retrações das cicatrizes das queimaduras”, conta o cirurgião plástico José Carlos Daher, que foi aluno de Pitanguy e hoje atua no centro que fundou em Brasília.
“Essa experiência serviu de base para que o professor ensinasse o que havia aprendido no exterior a centenas de profissionais, que trataram os sobreviventes durante muito tempo tentando melhorar o contorno corporal e a aparência deles”, prossegue.
Daher foi um dos médicos que, anos depois, seguiram cuidando das vítimas do incêndio.
“Pitanguy salvou vidas e desenvolveu técnicas para aprimorar o tratamento dos pacientes”, sintetiza o discípulo.
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À época, essa área da medicina ainda engatinhava: os principais procedimentos haviam sido desenvolvidos para soldados mutilados. O próprio Pitanguy teve aula com aquele que é considerado o pai da cirurgia plástica moderna, Harold Gillies.
O médico britânico trabalhou em meio aos horrores da 1ª e da 2ª Guerra Mundial, tornando-se referência no tratamento de faces desfiguradas pelas batalhas — saga narrada por Lindsey Fitzharris no recém-lançado “O Restaurador de Rostos”, da Intrínseca (clique aqui para comprar).
Pitanguy também virou mestre, e ajudou a sedimentar um campo vital e repleto de inovações, o dos procedimentos reparadores.
Cirurgia plástica: a origem
Quando se fala em cirurgia plástica, é quase automático virem à cabeça intervenções estéticas como lipoaspiração na barriga, implante de silicone nas mamas e rinoplastia para desenhar o nariz.
Mas a base e a origem de todas elas residem nos métodos reconstrutivos que, por ironia, hoje são desconhecidos de boa parte do público.
Por definição, a cirurgia plástica tem como objetivo a reparação ou a correção de deformidades e defeitos impostos ao corpo humano.
Nesse sentido, trata grandes queimaduras, restaura áreas do organismo que foram retiradas devido a um câncer, reforma partes da face, dos membros e do tronco traumatizadas em acidentes, corrige malformações congênitas como fissura labiopalatina e retira o excesso de pele resultante de cirurgias bariátricas.
De acordo com o último censo da área, de 2018, praticamente 40% do total de cirurgias plásticas realizadas no país são reparadoras.
Dentre elas, a mais comum é a decorrente do tratamento de tumores cutâneos, representando quatro em cada dez casos; em seguida, vêm os procedimentos feitos após intensa perda de peso, com 11%.
Antigamente, costumava-se diferenciar duas especialidades dentro da cirurgia plástica sob o argumento de que a reparadora era destinada a recuperar a função de uma parte do corpo, enquanto a estética se resumia a ganhos na aparência.
Mas essa diferença se equilibra numa linha tênue, e não se justifica para muitos entendidos.
Um exemplo: a cirurgia de reconstrução mamária após o tratamento de um câncer não devolve função à mama, porém restabelece algo impactante em termos de autoimagem e autoestima.
“Os cirurgiões fazem o máximo para, com tecidos da própria paciente, entregar uma mama normal no desenho externo, mas essa mulher não poderá amamentar e apenas parte da sensibilidade ali será recuperada.
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No entanto, o procedimento melhora a qualidade devida dela em um milhão por cento”, expõe Daher.
Em termos práticos, a necessidade de estabelecer fronteiras dentro da cirurgia plástica surgiu por questões financeiras, para definir o que o Sistema Único de Saúde (SUS) e os convênios têm a obrigação de oferecer ou não.
“O limite é uma zona cinzenta, mas um dos questionamentos para a cobertura por planos de saúde é se a cirurgia vai, de alguma forma, gerar uma melhora funcional para o paciente”, diz o cirurgião plástico Fabio Busnardo, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Um caso frequente nos dias de hoje é a operação para retirar o excesso de pele após a perda de peso promovida pela bariátrica.
“O indivíduo fica muitas vezes com um abdômen em avental, e essa sobra de pele não é um incômodo só estético. Pode estar associada a dermatites de contato, hérnias, entre outros problemas”, descreve Busnardo.
No fim, os médicos precisam dar justifcativas detalhadas para convencer a operadora a arcar com o procedimento.
Para Daher, é complicado dividir a especialidade: “A estética está presente em todos os gestos do cirurgião plástico, pois ele sempre busca restaurar contornos naturais com formas bem-aceitas pelo paciente e a sociedade”.
Os casos que indubitavelmente preenchem os critérios da intervenção reparadora costumam contar não só com o olhar do plástico mas também com o de outros profissionais dos ramos clínico e cirúrgico. E esse trabalho em equipe faz diferença.
“Há estudos mostrando que ter um cirurgião plástico responsável pelo fechamento de uma cirurgia oncológica dá mais segurança ao colega que está retirando o tumor”, conta Busnardo.
“Saber que há um especialista na reconstrução dos tecidos dá uma maior tranquilidade para o cirurgião lançar mão de condutas mais agressivas e efetivas nessas circunstâncias”, completa o também médico do Núcleo de Cirurgia Plástica do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.
E, de novo, o valor disso vai muito além da aparência. Garantir uma boa finalização após reconstruir os tecidos é crítico para que certas regiões do corpo continuem cumprindo suas funções.
Cicatrizes ou anormalidades em pálpebras e lábios, por exemplo, podem comprometer a visão e a alimentação. “Quando um tumor de pele é retirado, você cria uma ferida que precisa ser fechada de forma eficiente e agradável esteticamente.
Isso só se faz com a arte da cirurgia plástica, que vai deixar a cicatriz menos retrátil e aparente, e fechar esse buraco aproximando as bordas ou usando retalhos de outras áreas”, detalha Daher.
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Falando em retalhos, eles nada mais são que pedaços de tecidos transferidos de uma parte saudável do corpo para outra em apuros. São diferentes de enxertos por serem extraídos da própria pessoa, e essa solução foi crucial para o progresso da cirurgia plástica.
Ainda que os primeiros procedimentos remetendo à área datem do século 4, o divisor de águas para o seu desenvolvimento foram as desgraças físicas resultantes das duas grandes guerras e o avanço no conhecimento de anatomia e fisiologia dos retalhos entre 1970 e 1990.
“Hoje os retalhos são um recurso versátil, utilizado nas mais diversas operações reparadoras”, afirma o cirurgião plástico Yuri Moresco, do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Dependendo da complexidade do retalho, às vezes se faz necessário o uso de microcirurgias para reconectar vasos que nutrem aquele tecido livre com artérias e veias próximas da área da lesão.
“Hoje essa cirurgia é realizada com magnificação ótica, ferramenta que permite aumentar nossa visão em até 40 vezes”, conta Rudolf Nunes Kobig, chefe do Centro de Microcirurgia Reconstrutiva do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia Jamil Haddad, no Rio de Janeiro.
A técnica que une vasos e nervos muito finos, com diâmetro de milímetros, recorre a fios invisíveis a olho nu.
“A microcirurgia reconstrutiva é extremamente complexa, requer conhecimento e uma técnica apurada, geralmente exigindo antes treinamento em animais”, contextualiza o médico Eduardo Chem, membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) e expert nessa vertente.
“As duas grandes áreas de atuação desse método dentro da cirurgia plástica são a oncoplástica, com o uso de retalhos em áreas de ressecção de tumores, e a ortoplástica, para correção de defeitos ortopédicos nos membros superiores e inferiores”, diz Kobig.
A microcirurgia também é usada em casos de reimplante de membros após acidentes. Diante disso, pode-se dizer que a demanda não é pequena, mas esbarramos aí com as limitações estruturais e financeiras no campo da saúde.
“Nem todos os hospitais do SUS possuem os recursos necessários para isso. Faltam aparelhos e mesmo médicos com essa expertise para realizar as intervenções”, avalia Moresco.
Microscópios cirúrgicos são caríssimos e o número de especialistas aptos a utilizá-los tampouco supre a necessidade ó uma questão que afeta inclusive hospitais privados.
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No terreno das dificuldades, outra enfrentada pela cirurgia plástica reparadora é a falta de doadores de tecidos, essenciais para a realização de enxertos nos mais diversos procedimentos.
Hoje o Brasil possui quatro bancos de tecidos em funcionamento, que distribuem esse material para o país inteiro via Central Nacional de Transplantes, controlada pelo SUS. Mas a quantidade atual é insuficiente para atender a demanda.
“Existe uma escassez na doação de tecidos. Muitas famílias que doam órgãos não aceitam doar a pele pois acham que o corpo vai ser mutilado, mas isso não acontece. Só é retirada uma fina camada de zonas não expostas. Ainda assim, é difícil fazer pessoas enlutadas entenderem”, explica Chem, que é diretor do banco de tecidos da Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
“Uma opção excelente de substituto é a membrana amniótica, envoltório da placenta que é desprezado após o parto. Estados Unidos, União Europeia e Canadá já fazem uso para essa finalidade.
Por aqui estamos com um projeto de lei para que seja permitido utilizá-lo. Será mais simples pedir às mães que doem o tecido”, esboça o especialista.
No Brasil, outro destaque na área de enxertos é o uso da pele tratada de tilápia, projeto pioneiro que começou no Ceará e está ganhando escala. Fora isso, existem lacunas de conscientização e informação que criam barreiras para as cirurgias plásticas reparadoras.
Um caso paradigmático é o da reconstrução mamária.
“Apenas 20 a 50% das mulheres que passaram por mastectomia para retirar a mama inteira realizam procedimentos para reconstruí-la”, aponta Busnardo.
“Há disparidades regionais no país relacionadas tanto a questões econômicas como educacionais. Muitas pacientes ainda não sabem que a reconstrução é um direito após o tratamento”, continua.
A intervenção envolve processos de simetrização (para um seio não destoar do outro), e sua finalização deve levar em conta a necessidade de eventuais sessões de quimio ou radioterapia, que impactam o resultado.
“Normalmente, precisamos de uma a duas cirurgias complementares para a reconstrução ficar totalmente pronta”, diz o professor da USP, ressaltando que o acesso a elas ainda é um desafio no país. Pelo menos, há movimentos para vencer a inércia.
O governo federal anunciou que vai destinar mais de 100 milhões de reais para a ampliação dos procedimentos de reconstrução mamária e a redução da fila de espera no SUS.
O Ministério da Saúde estima que cerca de 20 mil brasileiras esperam pela operação, mas especialistas acham que o número está subestimado.
Talvez o próprio glamour das cirurgias mais estéticas, e o lucro e visibilidade que geram, tenha prejudicado a difusão e o reconhecimento da plástica reparadora.
Um levantamento feito pela SBPC em 2020, em cima de dados demográficos da especialidade, descobriu que cada vez menos profissionais se interessam em se aprofundar nos procedimentos reconstrutores.
“A formação do cirurgião plástico está falha. Os residentes e estagiários querem aprender somente uma meia dúzia de ‘estéticas’. E a sociedade civil e médicos em geral nos veem assim”, escreveu o cirurgião Antônio Roberto Bozola no relatório.
“Mas cirurgia reparadora é a nascente do conhecimento inclusive para realizar qualquer procedimento ‘estético’”, defende o professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (SP).
Pitanguy já dizia que nós temos o direito à beleza, mas é essencial lembrar que ela não existe sem saúde.