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Constelação familiar: relatório expõe riscos da prática no Judiciário e no SUS

Relatório do Instituto Questão de Ciência (IQC) mira na falta de embasamento científico sobre a segurança e a eficácia da abordagem

Por Lucas Rocha
Atualizado em 5 ago 2024, 09h29 - Publicado em 25 jul 2024, 11h32
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Faltam evidências científicas sobre os benefícios da prática da Constelação Familiar (Foto: Freepik/Divulgação)
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O uso de constelação familiar para resolução de conflitos e tratamentos de saúde é alvo de controvérsias devido à falta de evidências científicas sobre sua eficácia e os perigos da prática.

Neste contexto, pesquisadores e especialistas das áreas de psicologia e direito redigiram um relatório que questiona o recurso como estratégia no Judiciário e no Sistema Único de Saúde (SUS). Produzido pelo Instituto Questão de Ciência (IQC), o documento mapeia a utilização da prática no Brasil e seus dilemas.

“O documento tem como objetivo estimular a reflexão crítica sobre os problemas que a adoção de uma prática sem segurança nem efetividade comprovadas cientificamente pode trazer para a população que usa serviços públicos”, explica Paulo Almeida, diretor-executivo do IQC.

O que é constelação familiar?

A abordagem criada pelo psicoterapeuta alemão Bert Hellinger se diz útil para contornar situações de dificuldades em várias áreas da vida, incluindo questões familiares, emocionais, relacionais e profissionais.

Ela se baseia na ideia de que conflitos e traumas vivenciados por ancestrais podem influenciar profundamente a vida dos indivíduos, ainda que de forma inconsciente. Com dinâmicas que reencenam cenas familiares com a participação de representantes, o método busca identificar e desvendar padrões negativos, o que supostamente seria um caminho para corrigir esses problemas.

No entanto, a segurança e a eficácia do método não são comprovadas cientificamente. E traz riscos à saúde mental do “constelado” (nome do indivíduo que se submete a sessão). Como diz o texto do IQC:

“A intervenção pode agravar estados emocionais de sofrimento ou mesmo de desorganização psíquica, exigindo um acompanhamento profissional que não é garantido durante e após as sessões”.

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Uso é feito por órgãos oficiais no Brasil

As conclusões foram enviadas ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), já que a prática é utilizada em alguns tribunais como solução alternativa para conflitos.

Consultado, o órgão afirmou em nota que não há nenhuma recomendação do conselho a respeito do uso das constelações familiares no Poder Judiciário.

No momento, tramita no CNJ um Pedido de Providências que solicita a regulamentação da prática, processo ajuizado pela Associação Brasileira de Constelações Sistêmicas.

“O processo começou a ser analisado em dezembro do ano passado, mas um pedido de vista interrompeu o julgamento. Não há previsão de quando retornará à pauta”, conclui a nota do CNJ.

No âmbito da saúde pública, a abordagem é ofertada pelo SUS no contexto das Práticas Integrativas e Complementares (PICs). Consultamos o Ministério da Saúde sobre o posicionamento da pasta em relação ao relatório do IQC e aguardamos retorno.

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Procuramos a Associação Brasileira de Consteladores (ABC) para comentários. Em nota, a associação afirmou que a constelação familiar não substitui a terapia médica, psicológica ou a aplicação do Direito.

“Cumpre destacar que a constelação familiar não se confunde com psicologia e, ainda que venha de uma trajetória do pensamento sistêmico, as constelações são um método fenomenológico de observação das dinâmicas que regem os comportamentos e relacionamentos, fazem parte de uma experiência única, uma vivência prática que produz efeitos terapêuticos”, afirmou a ABC.

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Falta de evidências

Um dos argumentos centrais do relatório do IQC concentra-se na falta de embasamento científico sobre a segurança e a eficácia da constelação familiar.

O texto cita uma revisão sistemática publicada em 2021, que considerou mais de 7 mil artigos em busca de evidências que pudessem comprovar os efeitos da conduta em pacientes. Deste conjunto, apenas nove estudos apresentaram benefícios considerados significativos.

Os critérios de inclusão consideraram estudos que avaliassem a saúde mental dos participantes antes e após a intervenção, e aqueles que investigassem os efeitos da constelação familiar na saúde mental de pacientes.

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“A quantidade e a qualidade geral das evidências são baixas devido à ausência frequente de grupo controle e ao período de acompanhamento tipicamente curto”, frisaram os autores.

Os efeitos negativos apontados por participantes de quatro estudos analisados podem ser comparados às taxas relatadas para intervenções psicoterapêuticas em geral — em torno de 5%. Contudo, o risco de respostas emocionais fortes geradas pela constelação familiar foi visto pelos autores como capaz de desestabilizar temporariamente indivíduos com estado de saúde mental menos estável.

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Documento do IQC mapeia o debate sobre o uso da Constelação Familiar na justiça (Foto: Tingey Injury Law Firm/Unsplash)

Conceitos preconceituosos e sexistas

Para os especialistas em psicologia e direito, a visão de mundo expressa nas teorias de Bert Hellinger reproduz uma série de preconceitos.

“O relatório mostra que a constelação familiar, além de não ter base em evidências, parte de uma visão muito controversa, que parece mobilizar um modelo de família idealizado, na contramão de avanços recentes em matéria de direitos humanos”, destaca o mestre em direito Mateus França, um dos coordenadores da pesquisa.

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Um exemplo citado é a premissa de que o comportamento humano seria regido por uma ordem que, quando desrespeitada, geraria uma punição para restabelecer o equilíbrio do sistema familiar.

Para os críticos, a constelação familiar pode resultar em sistematização da violência contra as vítimas, principalmente mulheres.

“Hellinger também aponta as mulheres como co-responsáveis ou causadoras de desvios de comportamento que tendem a gerar consequências a descendentes na família. Abortos, sejam eles espontâneos ou provocados, são apontados como uma das principais causas de quebra dessa ordem natural”, dizem os autores em trecho do relatório.

Sobre esse ponto, a ABC afirma: “Obviamente que a não revitimização deve ser a direção de todos os atores que lidam com essa temática tão delicada. Além de cumprir a lei específica, entendemos ser imprescindível especial cuidado em respeito aos direitos humanos.”

O dossiê explora ainda questões éticas ligadas à constelação familiar e à falta de método do criador da abordagem.

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Os pesquisadores defendem que as hipóteses e explicações da teoria precisariam ir além da mera observação de casos e seguir uma metodologia clara que permitisse testes de validação por outros estudiosos. Nesse contexto, a falta de transparência comprometeria, por exemplo, a comprovação de supostos benefícios para os pacientes.

Na psicoterapia, o profissional propõe ao paciente reflexões a partir de palavras, ideias ou imagens, com o objetivo de apresentá-lo a estratégias que lhe permitam lidar sozinho com suas questões. Na constelação familiar, por sua vez, a figura do constelador toma para si esse papel central.

Quando presentes, eventuais soluções obtidas pela abordagem seriam fruto do novo sistema de crenças estabelecido pelo profissional e não necessariamente de um progresso alcançado pelo indivíduo.

“A cura é oferecida por meio da imposição de uma narrativa sobre a causa e a solução do problema, sendo o convencimento do paciente quanto à visão de mundo vendida pelo terapeuta adepto da constelação familiar parte indispensável do processo”, enfatizam os autores do documento do IQC.

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No momento, tramita no CNJ um pedido de regulamentação da prática de Constelação Familiar (Foto: Gil Ferreira/Agência CNJ/Divulgação)

Ao menos 11 estados usam a constelação no Judiciário

O relatório apresenta um levantamento sobre a existência de incentivo institucional e de regulamentação por parte dos Tribunais de Justiça (TJ) e dos Tribunais Regionais Federais (TRFs) para a execução de projetos relacionados à constelação familiar.

O documento questiona ainda quais atos normativos embasam tais incentivos e se há registros ou estatísticas sobre essas condutas. Foram consultados 27 TJs e 5 TRFs.

Ao todo, nove não responderam ao pedido. Outros 11 afirmaram incentivar ou regulamentar a prática: os TJs dos estados do Amapá, Distrito Federal, Maranhão, Pará, Paraíba, Piauí, Rio de Janeiro, Rondônia e São Paulo, além do TRF da 3ª Região (que abrange São Paulo e  Mato Grosso do Sul).

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Os Tribunais de Justiça dos estados do Acre, de Goiás, do Rio Grande do Norte, de Roraima, de Santa Catarina e do Tocantins afirmaram não desenvolver atividades ou endossar o método.

Contudo, o relatório pontua que, em algumas dessas regiões, atividades em comarcas municipais e eventos compartilhando experiências já foram realizados, a despeito da negativa enviada ao IQC.

De acordo com o estudo, a aplicação da prática no Poder Judiciário brasileiro, em geral, ocorre por iniciativa dos magistrados responsáveis pela gestão de suas unidades.

No Sistema Único de Saúde, cerca de 25 mil sessões de constelação foram realizadas desde 2018, com aumento significativo em 2022.

“É preciso pensar um caminho de enfrentamento desse problema, seja pela conscientização da população ou pela transformação do processo em que certas decisões políticas são tomadas”, conclui Almeida.

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